O desafio

Com a sua direcção bem definida, o peixe navegava por entre a grande janela que o rodeava e que o guardava da morte certa. Lá dentro para além de ter os pequenos seixos que faziam de terra, havia uma alga que teimava em manter a sua verde cor. Ao peixe aborrecia-lhe a alga, pois esta, estendia-se até lá acima e não era por isso que lhe faltava água. Situação que, no caso do peixe seria fatal. Todo este cenário, que assenta numa folha de papel, podia bem dar uma artística fotografia mas não, é apenas o culminar de uma paixão, de um amor que se julgava durar para sempre, para todo o tempo.

No ano passado, a Cristina, nos aconchegantes dias de Setembro passava os fins da manhã à janela a desfrutar do pequeno-almoço com a perna a baloiçar à janela do primeiro andar. Num desses dias, quando o relógio lhe anunciou que estava na hora de baixar os estores, que era altura de tirar a perna da parede cor do Sol, um moço bem aparentado estava à sua espera à entrada da sua casa com um aquário na mão. Foi esta a prenda, a recordação que ela guarda, daquela paixão que inflamou o seu coração, quando os lábios dele afagaram os seus num beijo que jamais se esquecerá, para nunca, nunca mais se verem.

O Oitédio

O Aurélio é a pessoa mais aborrecida do mundo.

Descende de uma linhagem familiar já com oito gerações de pessoas chatas. Quando se encontram entre si, ou com outras pessoas, pouco falam. Ficam cabisbaixos, silenciosos, metidos consigo mesmos, os 0lhos no chão, em longas conversas interiores e secretas com os botões da camisa e as pedras da calçada. Poder-se-ia pensar ser impossível uma família destas existir: como se conhecem? como constroem relações? São perguntas ingénuas. Existe muita gente quase tão aborrecida como Aurélio e os seus antecessores, e têm uma capacidade especial de se reconhecer entre si, de construir momentos que mesmo se aborrecidos têm chamas de magia, e ao longo dos anos isso sempre chegou para foi juntando cada um dos oito casais da família.

Aurélio é especialmente entediante. A selecção natural apurou-lhe a capacidade de ser chato, ao longo dos anos. Um factor genético, certamente. Ao contrário dos pais e dos avós e dos bisavós, no entanto, Aurélio é chato não por falar demenos, mas por falar demais. Fala desde que acorda até que se deita, fala sozinho, fala monocordicamente, sabe tudo sobre tudo, tem opinião sobre tudo, leu tudo, ouviu falar de tudo. Mete conversa com pessoas na rua que não conhece, com a porteira, com o segurança, com o empregado do café, com um antigo colega da escola primária que não via há quase vinte anos, com a pessoa que espera o mesmo autocarro na mesma fila no mesmo dia de inverno em que está a chover e o dia está cinzento. Não há quem o possa ou consiga calar.

O Aurélio é muito inteligente, e já garantiu a propagação dos genes. Encontrou a mulher ideal para si, que fala desde ainda antes de ter acordado, e ainda está a falar já depois de ter adormecido. Dão-se muito bem, mesmo se não se ouvem um ao outro, só falam, e falam, e falam. Sobre seja o que for, seja onde for, seja com quem for.

Eu conheço o Aurélio, o verdadeiro. Na verdade, até conheço muitos Aurélios, e tu também. Qualquer um de nós pode ser um Aurélio. O meu medo, no entanto, é transformar-me num deles.