SEXTA-FEIRA, MAS QUE SÁBADO!

Sexta-feira. Olhei para o relógio. Faltam 5 mintuos para 18h. Cinco minutos para sair deste cúbiculo, prisão, monotonia...há quem lhe chame de escritório. É o barulho do ar condicionado, é o barulho dos computadores, é o barulho de dedos a tocarem no teclado...
Olá, sou o Vitor e este é o pequeno inferno onde trabalho.
Às 18h sai apressadamente e dirigi-me até à estação de comboios. Não tenho carro e já é quase noite. Não tem problema. Afinal, não tenho ninguém à minha espera. Estação após estação, aproxima-se a minha saída.

Da estação a minha casa é um estantinho. A parte boa deste trajecto que faço sózinho é este jardim com este cheiro tão característico da minha terra. Bragança. Podia ser o amor da minha vida, mas para ganhar dinheiro nem sempre se pode estar onde se quer.

Paro em frente à minha casa e penso: "Sinto-a como uma casa assombrada! Sinto-me sózinho!" Preciso de alguém que preencha as quatro paredes onde vivo, que lhe dê alma, que lhe dê vida.
Sábado de manhã nem me quis olhar ao espelho, não preciso que o meu reflexo me diga que tenho a barba por fazer. "Ai! Estou numa encruzilhada!"

Decidi ir até à biblioteca local. Biblioteca de poucos livros, mas também não tencionava pôr a leitura em dia.
Estou sentado numa mesa ao canto, gosto de observar as pessoas, compreender os motivos que levam os corpos virem até este lugar. Haverá muitos como eu?
Tiro de dentro da minha mala uma garrafa de água. Abro-a e bebo-a.

"Peço desculpa mas não é permitido líquidos na biblioteca!" - oiço alguém dizer. A voz era suave. Olho para trás a ver quem falava. Não eram dez miúdas com baton, mas sim uma mulher pequena e sem qualquer tipo de máscara, sem qualquer adereço...a simplicidade em pessoa. Por momentos não consegui fechar as pestanas. Podia até dizer que me tinha apaixonado naquele momento, mas estas loucuras nem sempre trouxeram bons resultados. Estava farto de amores rápidos e que não crescem. Preciso de mais: a mesma liberdade e menos desilusões.
"Vou convidá-la para sair, vou perguntar que cor preenchem os seus olhos, se tem a música como vício...pfff...ou se quer sair comigo...ah...já tinha pensado nisso antes...mas também deve ter sempre planos..Afinal, de que gosta uma bibliotecária?..."

"Como se chama?"
Não acredito...no meio de pensamentos nem reparei que ainda contínuo petrificado a olhar para ela.
"Victor." - Disse eu.
"Prazer, sou a Alice!

Alice, pensei eu. Não fales, não estragues. Vamos permanecer os dois, aqui, e saborear o que o silêncio tem para nos oferecer.

Quando for grande não quero ser...

...um círculo. Por vários motivos prefiro ser um quadrado. Trabalhar quatro dias por semana, fazer quatro coisas que me envolvem por completo. Se fosse um círculo estaria sempre a rodar e não conseguiria parar...seria uma vida extenuante. Sendo um quadrado consigo parar nas coisas, vivê-las de tal forma que só continuam a ser "coisas" porque o dicionário ainda não tem uma palavra que me defina e defina esses momentos. A sério, não estou a ser demasiado geométrica! O círculo já é perfeito e eu...eu quero ter a oportunidade de arredondar os meus cantos e, quem sabe, ficar bem redondinha.

Rafael e a Viagem sem Fim

Chamo-me Rafael, tenho 27 anos, e sempre adorei viajar de comboio. Quando era miúdo, lembro-me de ser acordado às 6 da manhã pelos meus pais, no meio da bruma matinal, para uma viagem de 4 horas e ligações até ao nosso destino de Verão.

Anos depois, fiz viagens semanais para o norte profundo, para um namoro semanal como o dos pássaros. Passa-se muita coisa num comboio em movimento, não é só o mundo que corre lá fora.

Um dia, ao abrir a janela de manhã, pensei: estou irremediavelmente deprimido. Era bom que assim não fosse, e até conseguia sorrir com prazer, mas não estava a dar. Fui para a Estação Oriente, pedi um bilhete para o próximo comboio a passar. Perguntaram-me o destino, tentando ajudar, mas sabia que não queria que me dessem a mão. “O próximo, e para longe.”

Apanhei-o por pouco, o relógio a tiquetaquear, tive de correr na plataforma. Era um comboio regional à antiga, e o suor escorria-me pela cara quando me sente, com o calor da corrida e da carruagem de metal.

Não queria pouca, mas muita terra, o corpo pedia-me como louco que me tornasse anónimo no meio de Vítores, Gilbertos, Alices e tantos outros ao meu lado.

Quando a viagem chegou ao fim, depois de quarenta e sete paragens, no interior do país, decidi prolongar a minha estadia no comboio, e entrei noutro para outro destino, para uma viagem interminável. Só com uma mochila às costas, passei por todo o lado, até os nomes dos sítios perderem significado e a barba se avolumar no rosto. Era uma espécie de maldição, senti, mas tinha preguiça de deixar aquela liberdade.

Quando passei a fronteira da Croácia, e andava pelos corredores das carruagens à procura de onde me sentar, vi-a a vir em direcção a mim. Também com uma mochila às costas e um brilho triste nos olhos profundos, morena e com ar estrangeiro. Mantive o passo, mas por dentro já estava a correr.

Se tivesse tido tempo de pensar, teria pensado que ela podia ser a paixão da minha vida. Mas não tive. Encontrei maneira de meter conversa, atabalhoadamente. Chamava-se Snjezana, que em português significa Floco de Neve, e na conversa que conseguimos ter senti que os dois sorrisos de viajante se iluminaram, com uma tontura de prazer confundida com o balançar da carruagem.

Horas depois, na carruagem-cama, quando nos beijámos e tocámos pela primeira vez, e depois do silêncio em que não se pode falar para não estragar, fizemos o nosso contrato vitalício:

Continuar sempre aquela viagem sem rumo. Mas agora, a dois.

Quando for grande não quero ser…

… nem informático, nem advogado, nem jornalista, nem trabalhar num escritório com ar condicionado, o dia todo sentado numa cadeira à frente das mesmas pessoas e do mesmo computador, a ver a rua lá fora.

Não quero fazer as mesmas coisas todos os dias, ter de levar o raio do carro à inspecção, perder horas de vida no trânsito, a beber café para combater o sono que tenho TODOS-OS-DIAS.

Não quero pagar contas, conhecer poucas pessoas, não ter tempo de ir a sítios, não quero ter amarras nem grilhetas, não poder passar todos os dias a viajar e ouvir línguas estranhas.

Não quero irritar-me, poluir o ambiente, fazer barulho, ter tristezas.

Não quero estar sozinho, e não quero ser só mais um dos muitos biliões de pessoas que já viveram neste planeta com tanta cor para conhecer.

Delfim, o cão Garfield

Céu azul. Quase meio-dia. Comida no prato.
A abanar a cauda e a intercalar o movimento das quatro patas, Delfim segue o cheiro delicioso de biscoitos de cenoura e tomate seco. Num movimento mecânico abre e fecha a boca, espalha a sua baba incolor e fedorenta em redor e ingere o mastigado. No fim, tomba bruscamente no chão de pança cheia.
Com alguma resistência a má disposição força-o a levantar. Tenta mover-se, mas sente que acabara de engordar uns 20kg e o estômago não lhe facilita a tarefa.
Ao aproximar-se de um armário próximo, vomita.

Houve um tempo em que a minha janela se abria …

Houve um tempo em que a minha janela se abria … para um sonho de pescador. Pela manhã, muito cedo, entrava com a aurora uma brisa fresca de sal e na neblina dançavam os primeiros raios de sol.

Quando o clima o permitia, pegava por vezes no óculo de longo alcance, oníricamente atávico, e dirigia o olhar para a linha do horizonte. Via baleias aproximarem-se com esguichos esfuziantes, passando ao largo em parada de saudação, as largas barbatanas acenando e mergulhos circenses precedendo o consolo da reentrada no abismo uterino.

Logo abaixo da janela que se abria nestes encantos, os peixes ziguezagueavam, cristalinos, em todas as direcções e embora os motivos me parecessem a princípio desconhecidos, lembrava-me depois do teu nome, quando via as letras douradas semi-submersas na dança dos cardumes.

Às vezes, lá muito em baixo, junto ao molhe, passeavam os vizinhos ao pôr-do-sol, ela feita de areia dourada, viva de olhos da cor das águas, ele barbudo e ensimesmado, negro de sal e de sol, com o braço na cintura dela, sirénica.

Às vezes o sonho resvalava para um negrume baço e o vento tacteava os vidros procurando avisar-me do mar revolto das noites d’insónia.

Charles Sometree

Houve um tempo em que a minha janela se abria para…

… as traseiras do prédio, onde havia um pequeno pátio para as crianças brincarem. Mas agora já não. Eu fechei-a no Verão passado, com grades de aço temperado, junto com todas as outras janelas da casa.

Ao princípio, era para fazer frente à criminalidade crescente que surgia na vizinhança, mas acabou por provar a sua utilidade vezes sem conta, desde que a Epidemia começou. Entretanto, coloquei vários armários encostados às janelas, para mais facilmente esconder a minha presença. Posso dizer-vos que não foi nada fácil.

Não sei como é que a Epidemia surgiu, nem quando nem porquê. Acho que por esta altura, isso já nem é realmente importante, e desde que as rádios e televisões deixaram de emitir que não consigo ter uma noção do que se passa lá fora. A semana passada ainda vi...

(frase ininteligível, manchada de sangue)

Estou infectado, não tenho muito tempo...Morderam-me na mão esquerda à cerca de 2 horas e já começo a sentir os primeiros sintomas de rigidez e baixa de temperatura.
Foi um erro táctico, só isso. Devia ter ficado cá dentro como sempre, devia ter ficado escondido e esperado que eles se fossem embora, mas quando ouvi os gritos do miudo, tive de o ajudar.

Merda. Se calhar foi porque me sentia demasiado sozinho, porque já não falava com ninguém há meses, ou porque estava farto de ser um cobarde. Não sei. Só sei que o miudo morreu. Eu cheguei tarde demais. No meio da confusão e da luta que se seguiu, consegui escapar, mas agora eles sabem onde estou. Estou a ouvi-los lá fora, a bater na parede, a arranhar a porta, a gemer. É um barulho enlouquecedor. Só queria que...

(frase ininteligível, manchada de sangue)

Eu sei que eles vão conseguir entrar cá dentro mais tarde ou mais cedo. Nunca vão parar, não têm medo e têm todo o tempo do mundo. Se alguém encontrar esta mensagem, só queria que soubessem que eu não me escondi aqui dentro sozinho por ser egoísta. Escondi-me por estar assustado. Tanto quanto sei, a superfície do mundo é agora uma massa humana de biliões de individuos, que apesar de mortos, insistem em andar por aí. Acho que isso é suficiente para assustar qualquer um.

Mas eu não me vou tornar num deles. Ainda tenho a minha pistola, e vou usá-la quando acabar de escrever esta carta.

 

A pistola já não tem balas. Puta de ironia. Tenho de descobrir uma outra forma de destruir o meu cérebro. É a única maneira de não me transformar num deles.

Vou ter de pensar em qualquer coisa. Rapidamente.

TPC 1 Escrita Criativa

Houve um tempo em que a minha janela se abria para outros universos...
Pela noitinha, depois do copo de leite com a bolachinha do signo e do beijinho da mãe, a luz do quarto era apagada. Lá ficava, a habituar o olhar á escuridão do quarto, acto pacífico e sem ansiedades de maior, porque naquele tempo a vida corria sem muitas preocupações. Seria até mais correcto dizer que a vida não corria, passava lentamente. Toda a gente sabe que quando somos pequenos, as semanas e os meses são muito mais compridos e um dia deve ter aproximadamente 24 horas e mais 10 de noite.

Habituado o olhar á escuridão, era possível vislumbrar o roupeiro branco de frente para a cama, no lado esquerdo da parede, algumas das prateleiras do móvel, a arca de palhinha ruiva e entrançada onde se guardavam algumas coisas menos precisas mas dotadas de boas recordações, e as janelas pelo intervalo no cortinado florido.
Era precisamente desse intervalo que o homenzinho de fato e chapéu preto aparecia de lado a espreitar o quarto. Sentindo-se seguro, dava o primeiro passo...
Nunca foi possível ver aquele homenzinho de frente ou de costas, ele só existia de lado, era como se fosse um perfil vivo.

Após as primeiras aparições, passado o susto inicial e engolindo a inevitável lógica matemática dos adultos:
- Não está aqui ninguém! Não está aqui nada... vês?!
E quando a luz voltava a ser apagada, o homenzinho voltava sorrateiro e silencioso de dentro do roupeiro onde se tinha escondido á cautela.
Com o passar do tempo, habituaram-se á presença um do outro e o Sr. Perfil de chapéu preto à gangster entrava e passeava sem pressa pelo quarto explorando curioso um universo tão diferente do seu.

Houve um tempo em que minha janela se abria para...

... uma cidade cinzenta.
Uma cidade cinzenta cheia de lugares escondidos e portas e janelas que nunca se abriam.
Lembro do prazer de ser criança atrás das grades da janela do primeiro andar, olhando a chuva molhar a rua e o asfalto explodir em cheiro e cascata na ladeira de paralelepípedos que gostava de imaginar como sendo minha piscina particular.
Carros se tornariam barcos e correriam ladeira a baixo como eu, refrescada pela água da chuva, que só mais tarde pude provar.

Houve um tempo em que minha janela se abria para a varanda de uma casa de campo.
Lembro da chuva desafiando os céus, do cheiro da terra e dos estampidos fortes dos trovões, que já não me assustam mais.
O cheiro da chuva no ar. O cheiro do bafo quente, da humidade. O calor colado no corpo até sufoca-lo. O corpo suando, ansiando por chuva.
Lembro do dia em que tomei chuva sem que qualquer um me impedisse.
Lavei a alma na chuva que caíra tantos anos sem que eu pudesse me libertar das grades e correr solta com ela

Houve um tempo em que a minha janela se abria para...

...para a rotunda principal de Loures, ou para a paragem de autocarro da Buraca, ou para a casa da D. Ana em Almeirim. Espaços com tempos diferentes tatuaram a minha forma de ser fruto de causas, casualidades, consequências e acasos cheios de um blá blá blá meio cinzentóarrosado e que não me vou dar ao trabalho de te contar.

Após anos e anos das mais variadas vivências concluo que, no geral, as pessoas gostam de ouvir outras a arrotarem tragédias. E a idade...oh...a idade, as rugas e a pele engelhada já não me permitem aguentar cochichos e olhares invasivos.
Não quero que tenham pena de mim, nem quero que olhem para mim como aquela última notícia que sentimos, quase como uma necessidade, de contar ao amigo.
Não sou nenhum brinquedo acabado de ser rotulado como "novo" e que todos olham, compram e falam sobre.
A novidade rapidamente deixa de o ser e o que está fora de prazo azeda. Por isso, o que quer que seja que mais tarde vás contar, pensa antes de o fazeres. No segundo aseguir podes estar a dizer a maior das loucuras.

Se me quiseres ouvir, falo-te do meu período rosa. Não mais do cinzento...

Houve um tempo em que a minha janela se abria para…

… a copa de uma árvore, num terceiro andar, e podia ver as cabeças das pessoas cada uma na sua vida, os carros a passar, uma pastelaria no prédio em frente sempre num corrupio de gente a entrar e sair, sempre com croissants de chocolate especialidade, que se derrete nos cantos da boca.

quando cresci, subi para o sétimo andar, e quando comecei a estudar, para o décimo terceiro andar. comecei a trabalhar no vigésimo sétimo andar, casei-me no quinquagésimo sexto andar, consegui vista para o mar no andar duzentos e trinta e três… cada andar mais acima mais baixo que o anterior, como se a selecção natural nos estivesse a compactar verticalmente, para acomodar mais e mais gente em altura.

com o tempo, deixámos de fazer a viagem para ir à rua, ruidosa e onde mal já se consegue respirar, e que mal conseguimos ver lá em baixo, pela minha janela. quando queremos passear, vamos para um dos andares-jardim, caminhar por entre as árvores importadas, lagos feng-shui e pássaros a chilrear, com as nuvens brancas almofadadas mesmo ao lado no meio do azul, num silêncio relaxante e calmo.

a única coisa de que sinto mesmo falta, é de ter o chocolate daqueles croissants nos beiços…