Houve um tempo em que a minha janela se abria para…

… as traseiras do prédio, onde havia um pequeno pátio para as crianças brincarem. Mas agora já não. Eu fechei-a no Verão passado, com grades de aço temperado, junto com todas as outras janelas da casa.

Ao princípio, era para fazer frente à criminalidade crescente que surgia na vizinhança, mas acabou por provar a sua utilidade vezes sem conta, desde que a Epidemia começou. Entretanto, coloquei vários armários encostados às janelas, para mais facilmente esconder a minha presença. Posso dizer-vos que não foi nada fácil.

Não sei como é que a Epidemia surgiu, nem quando nem porquê. Acho que por esta altura, isso já nem é realmente importante, e desde que as rádios e televisões deixaram de emitir que não consigo ter uma noção do que se passa lá fora. A semana passada ainda vi...

(frase ininteligível, manchada de sangue)

Estou infectado, não tenho muito tempo...Morderam-me na mão esquerda à cerca de 2 horas e já começo a sentir os primeiros sintomas de rigidez e baixa de temperatura.
Foi um erro táctico, só isso. Devia ter ficado cá dentro como sempre, devia ter ficado escondido e esperado que eles se fossem embora, mas quando ouvi os gritos do miudo, tive de o ajudar.

Merda. Se calhar foi porque me sentia demasiado sozinho, porque já não falava com ninguém há meses, ou porque estava farto de ser um cobarde. Não sei. Só sei que o miudo morreu. Eu cheguei tarde demais. No meio da confusão e da luta que se seguiu, consegui escapar, mas agora eles sabem onde estou. Estou a ouvi-los lá fora, a bater na parede, a arranhar a porta, a gemer. É um barulho enlouquecedor. Só queria que...

(frase ininteligível, manchada de sangue)

Eu sei que eles vão conseguir entrar cá dentro mais tarde ou mais cedo. Nunca vão parar, não têm medo e têm todo o tempo do mundo. Se alguém encontrar esta mensagem, só queria que soubessem que eu não me escondi aqui dentro sozinho por ser egoísta. Escondi-me por estar assustado. Tanto quanto sei, a superfície do mundo é agora uma massa humana de biliões de individuos, que apesar de mortos, insistem em andar por aí. Acho que isso é suficiente para assustar qualquer um.

Mas eu não me vou tornar num deles. Ainda tenho a minha pistola, e vou usá-la quando acabar de escrever esta carta.

 

A pistola já não tem balas. Puta de ironia. Tenho de descobrir uma outra forma de destruir o meu cérebro. É a única maneira de não me transformar num deles.

Vou ter de pensar em qualquer coisa. Rapidamente.

2 comentários:

Cheila Saldanha disse...

UUUUUUUh...SCARY!!!!!

Anónimo disse...

Hipóteses de fuga de espaços fechados... experimenta ler um conto de um fulano chamado Dick Haskins que se chama (tenho de ir à prateleira...)"A sala de visitas" (é numa antologia policial) ;-)

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