O TEU NOME

Foto: Fábio Miguel Lourenço Roque

Hoje à tarde quase beijei a senhora que estava ao meu lado, ela tinha o teu cheiro! É incrível como não me sais da cabeça. E o que apenas me resta de ti é aquele teu odor horrivel e exagerado a tabaco. É daqueles vícios que desprezo profundamente. E já não há nada a fazer...agora o cheiro a cigarros, Jaime, tem o teu nome!

Cidália

O contador corria desenfreadamente em busca do infinito, era surpreendente uma vez que, nem os humanos, que por isso procuram, mexiam um dedo. Os números passavam, sempre a crescer mas o som, dos números a crescer, mantinha-se o mesmo, sempre na mesma cadência, tristemente na mesma melodia. Apesar da factura estar a crescer, de forma uniforme, o que mais perturbava era a incessante torrente de água que corria nos canos ansiando pelo ar que permeava na banheira de Cidália.

Junto à banheira, as lágrimas já enrugavam a face da jovem moça, e o som dos seus soluços competia com a alegria da água que constantemente, preenchia a banheira. Ao contrário das lapas, que durante a maré vazia não estão sujeitas à humidade da água, os olhos de Cidália pareciam leguminosas que tinham sido demolhadas e dessa forma esquecidas. No seu rosto os rios de lágrimas estavam a deixar as marcas, pois elas já sabiam o seu caminho preferido e deixavam-se ir pelo caminho outrora traçado.

Passaram-se longos dias e a força que alimentava esta tristeza não se consumia, não se esgotava, e nem a água cessava de chegar à banheira. Aí, onde a água da rede pública se juntava aos afluentes que largavam o semblante de Cidália, jazia o corpo de Bruno que permanecia impávido aos soluços do seu amor e à força de água. Bruno já não respirava há dias, a sua energia tinha partido. Mas na jovem Cidália, toda a sua energia era triste, para ela, nada mais havia.

Lembrava-se constantemente das alegrias, das gargalhadas, das tristezas, dos medos e ansiedades, e gostava de tudo isso, queria tudo isso outra vez. Sentia que era demasiado nova, para ficar sujeita a esta amargura e Bruno, Bruno era tudo, mesmo tudo.

Afogar para ela, não seria difícil, ou pelo menos era assim que pensava. De facto era dos poucos pensamentos que lhe surgiam na mente, capacidade que, algumas pessoas que querem tomar controlo da sua mente gostavam de ter de forma permanente. Mas não, Cidália estava completamente descontrolada, a sua vivacidade estava a ser consumida e ela não queria ter nenhum controlo.

Nessa tarde, depois de o céu estar tantos dias encoberto, o Sol voltou a raiar, e, a pouco e pouco começou a aquecer o coração da Cidália, a nutrir lentamente o seu organismo. Preso pelas leis da física e limitado pelas leis da natureza, o Sol livre como é, resolveu abraçar e aliar-se à água que preenchia os lavabos da casa de Cidália e de Bruno, um brilhante e colorido prisma da cor do arco-íris, preencheu os azulejos e levou as lágrimas de Cidália.

Agora que Cidália, se sentia acompanhada novamente, já sabia o que fazer. Bruno já tinha sido mais do que lavado pela doçura das suas lágrimas, era tempo de o deixar partir da sua mente, afinal, em todo o seu coração, Cidália, sentia que, o que Bruno queria não era ficar com ela para sempre, mas sim que ela para sempre fosse feliz.

A maldição

Os cristais formavam-se, formando gotas substanciais que se desprendiam da minha face, os meus olhos avermelhavam-se como uma fogueira acabada de se incendiar. Eu já não podia mais, aguentar esta angústia que me atormentava, de dia e de noite, queria saber o que tinha acontecido à Manuela e ao seu companheiro. Quando olhava para as estrelas lembrava-me do sorriso e da alegria que me dava em ler aquelas palavras que traziam gargalhadas ao meu dia, mas, quando olhava para os anúncios das bruxas que o senhor alegremente distribuía à saída do metro, o meu coração inflamava, a ira tomava posse de mim, e considerava seriamente se não haveria de ir à bola de cristal, saber onde estava a Manuela. Mas não, não podia fazer isso, eu sabia que tinha de me acalmar, não podia ferver ainda mais.

Um dia, pensei em ir às cartas, jogar póquer e fazer algum dinheiro. Do pensamento saiu a acção e pus-me a andar em direcção ao casino que brilhava como um pirilampo no canto do meu olhar. Prestes a lá chegar interpelou-me um transeunte:

- Pára - disse-me ele - chegou a tua hora, tens de agir, a Manuela não pode ficar presa numa qualquer caixa de correio electrónico. A Manuela tem o potencial de figurar ao lado do Caim, do Símbolo Perdido.
- Perdido? - pensei eu - perdido está o moço no seu cabelo comprido que já nem sabe por onde ir. Será que esteve a comer esparguete.
- A sério, como achas que eu sei, que a Manuela não te larga os pensamentos?
- Pois tens razão, de facto tu até tens um ar sapiente. Mas diz-me que sugeres que eu faça?
- Traz-me duas folhas, de papel uma caneta e vamos ali para o meu vulcão, eles nem sabem a alegria que os espera!

A tela

Ouvia-se um som áspero a rabiscar uma folha de papel. A folha, que anteriormente era branca estava a ficar preenchida por aquilo que uma criança chamaria de desenhos ou bonecos, pois para ela, não era muito diferente da sua imaginação projectada numa folha de papel.

Na verdade, essas figuras que tinham agora transformado a personalidade da folha de papel, eram notas. Notas que não eram apontamentos, embora fossem notas que talvez um dia valessem dinheiro, pois Ângela, embora gostasse de escrever os seus pensamentos e gostasse de desenhar, hoje ela escrevia notas para uma música inspirada pelo pássaro colorido que a tinha acordado pela manhã.

Também, o rio que apressadamente tinha passado pelo jardim de Ângela depois de ter servido de comida para um belo e jovem cavalo, de ter servido de alimento a vários campos de milho e ter acolhido um jovem que nele quis tomar banho pela manhã, se tornou fonte de inspiração artística não só para Ângela que agora dedilhava a sua bela harpa mas também para um pintor que protegia a cabeça com uma boina enfeitada com uma pena vermelha.

O velho pintor que sabiamente partilhava a sua experiência de vida na tela, sentava-se com frequência por cima da ponte por onde passavam os aguadeiros que traziam água do fosso para a aldeia. Nesta celeste manhã, o experiente senhor pintava um castelo dentro de uma bolha de sabão. Não que o castelo tivesse uma fraca muralha, não era nada disso. Naquela tela, Natércio estava a pintar as muralhas das pessoas que tinha encontrado ao longo da sua vida. Sim, ele também a si próprio, se tinha encontrado.

Comboio de pensamentos

Ela estava no comboio, do lado da janela, a ver todo um mundo a passar com uma rapidez imensa. Ía visitar a sua terra natal, aquela terra que, apesar de já ser muito antiga, fazia-a sentir completa, talvez por ter nascido lá.
Já na janela, agora do seu quarto, observava o mundo lá fora, atarefado para uns, mais tranquilo para outros...

"Gosto de observar as pessoas, ver a forma como agem, reagem ou passam despercebidas. Por vezes ora são o meu reflexo ora são a minha inspiração. E tanto que se pode aprender com esses nossos pequenos Mestres!"

A mulher da equação indeterminada

Joana era o majorativo de Joaninha, o nome pelo qual era conhecida no museu onde trabalhava. Joaninha, uma jovem rapariga de cabelo sedosamente liso que geralmente se vestia com cores que condiziam com a sua vivacidade e alegria diários, morava num corpo alto e muito bem constituído. No seu rosto, os profundos olhos que emprestam a sua cor às avelãs salientavam-se abraçando o fino nariz que terminava perto dos seus lábios.

A jovem rapariga fazia o restauro e a conservação das peças mais valiosas do espólio do museu onde se encontrava, contando também com uma extensa experiência em renomeados museus estrangeiros, o que a tornava uma jovem profissionalmente muito desejada por diversas instituições. Já lhe tinham sido oferecidas propostas muito atraentes a nível de gestão, as quais ela, com a sua astúcia e cortesia, gentilmente recusava, deixando a porta entreaberta uma vez que, o que ela gostava mesmo era do contacto diário com peças históricas cobiçadas por muitos e apreciadas por tantos outros.

Esta sua paixão pelo património histórico da humanidade, advinha do interesse e de um profundo desejo de experienciar a vida dos antepassados o qual ela sentia que, de certa forma vivenciava diariamente no seu trabalho.

No entanto, apesar do seu fascínio pela História e do seu prestígio internacional, Joaninha sentia-se muitas vezes insegura. Por um lado porque ansiava muito pelo presente mas sentia-se muito atraída pelo passado, por outro porque apesar de se sentir tão atraída pelo passado gostava imenso de escrever.

Havia também uma figura que Joaninha sentia que estava a aproximar cada vez mais de si, um homem para partilhar o seu amor, a sua alegria, os seus sorrisos, no fundo a sua vida.

Há muito que a presença masculina na sua vida limitava-se apenas a reputados investigadores, historiadores, directores de museus, abastados coleccionadores de arte ou responsáveis governamentais. Apesar de ela apreciar muito este tipo de contacto, eram contactos muito superficiais, que apenas aprofundavam o seu desenvolvimento profissional.

O seu pai, um humilde senhor da província, já há muito tempo que a tinha deixado. Satisfeito no entanto pelo sucesso da sua prole e por todas as alegrias que partilhava com a sua amada mulher e com toda a família, uma vez que o irmão de Joana era um financeiro muito respeitado no Médio Oriente e havia uma estabilidade familiar muito grande.

Apesar da ligação familiar e do sucesso que Joaninha e o seu irmão, Ângelo partilhavam e da forte ligação que estabeleceram quando cresceram, a ida de Ângelo para os Emirados tinha enfraquecido a sua relação mas Joaninha, que recentemente tinha tomado consciência de todos os buracos que faziam parte do seu caminho, estava prestes a dar uma volta na sua vida…

tudo começou quando

Foi num daqueles dias de Outono que amanhecem solarengos, e à medida que as horas avançam se vão entristecendo e acizentando, e lembro-me como se fosse hoje. Presta atenção ao que te vou contar.

O sábado amanheceu com sol, e sem núvens no azul celeste. Parecia um Verão de São Martinho, sabes? A aquela altura do ano associam-se árvores a despir e pessoas a vestir, e não dias como aquele. Segui com o olhar um pássaro solitário que passou à minha frente, a voar sobre o rio, para a outra margem. Um voo alegre como aquele só podia ser de uma andorinha, pensei. Ou um pombo, e levar a minha mensagem secreta, a pequena nota que te escrevi. Eh. Não me ligues, estou a distrair-me. Deixa-me continuar.

O dia parecia não poder ser pior para o que queria fazer, lindo e brilhante. Atravessei a ponte a pé, o chão ainda molhado da chuva da véspera, o ar limpo e agradável de respirar, e fui para o café onde nos tínhamos combinado encontrar, para mais um café e pequeno-almoço a ler o jornal da manhã.

Nesse dia levava-te uma despedida como surpresa.

Estava cansado, estava triste com o fosso entre nós no teu olhar, desanimado com ter de escalar os muros do teu castelo, como se todos os dias tivesse de reconquistar o mesmo pequeno pedaço de terra, todos os dias o mesmo ritual e a mesma batalha.

Ia dizer-te adeus, sabes? a nota que escrevera tinha tudo o que te queria dizer, o que esperava conseguir dizer-te, o que esperava ter decorado palavra-por-palavra, e que tinha de sair de mim num só fôlego.

Porque nunca te disse? Não sei. Depois do que aconteceu, deixou tudo de fazer sentido.

Fui o primeiro a chegar, como era costume, e pedi o mesmo de sempre, enquanto olhava para as pessoas e esperava por ti e pelo teu olhar perdido ensonado dos sábados de manhã. Vi-te dobrar a esquina e vir em direcção a mim ao mesmo tempo que a música que começava a tocar na rádio me envolveu, e à medida que te aproximavas, como numa bolha de sabão, tudo lá fora deixou de importar. Vi o teu cabelo de quem acabara de se levantar, o teu andar decidido e preguiçoso, e o teu sorriso como nunca vi outro a nascer. Amachuquei a nota de papel que tinha no bolso, e sorri-te de volta.

Sim, claro que me lembro da música. Queres ouvir, imagino… Mas o importante é que há alturas, meu amor, em que é preciso arriscar. Por vezes o destino sorri.

Como fez connosco.

Palavras do Desafio:
Encarnado; água; caixa; lágrima; olhar; vento: velocidade; castelo; força; mágoa

História Infantil - A Coelha Grávida
A Coelha-Grávida* atravessou a toda a velociade a horta da Dona Clara-Bebe-Chá. Tinha pressa para chegar ao castelo e nem parou para o habitual chá das cinco. Sentia-se feliz como nunca e estava ansiosa por dar a notícia ao Coelho-Amor.
Chegada ao Castelo, subiu aos seus aposentos para tomar um duche e colocar o vestido encarnado de seda e assimétrico.
De banho tomado e sentada em frente ao toucador, abriu a caixa dos colares e escolheu o mais especial de todos, um fiozinho de prata com uma lágrima dentro de uma garrafinha de cristal. A mãe da Coelha-Grávida tinha ido fazer uma longa viagem pelo Mundo mas antes de partir deu-lhe aquele colar de presente e segurando-lhe na pata disse:
- Esta é uma jóia de familia que tem passado de geração em geração, já foi da tua tetra-avó, depois da tua bisavó em seguida da tua avó e agora que é meu, é a minha vez de te passar o testemunho. Este colar é mágico, e deve ser usado em acontecimentos felizes, uma vez que esta lágrima não é uma lágrima de mágoa mas sim uma lágrima de felicidade. São os momentos de pura felicidade de quem usa o colar que a impedem de secar ou evaporar. Assim, minha filhota, cabe-te a ti ir alimentando esta lágrima, para que um dia possas tu também dar este colar a uma filha tua.
Num último olhar ao espelho, a coelha-grávida tocou uma vez mais o colar, colocou o baton encarnado, sorriu e sacudindo as orelhas sentiu-se pronta para descer até ao salão.
No salão encontrava-se o Coelho-Amor que passeava de mãos atrás das costas entre as portadas e a lareira. Lá fora, o vento fazia abanar com força as árvores do jardim e assobiava uma melodia que adivinhava tempestade.
Distraído nos seus pensamentos surpreendeu-se com o abraço da Coelha-Grávida:
- Ah!Estás linda, coelha da minha vida!
- Obrigado – respondeu a Coelha-Grávida corando ligeiramente.
- A que se deve este jantar especial? – indagou o Coelho-Amor.
A Coelha-Grávida num sorriso iluminado anunciou:
- Nunca me senti tão feliz! Coelho-Amor, vais ser papá!
O Coelho-Amor que já estava sorridente, pestanejou duas vezes e disse:
- Por favor repete.
- Vais ser papá! – repetiu a Coelha-Grávida lentamente.
- Mas isso é fantástico!
O Coelho–Amor não se conteve e depois de abraçar a Coelha-Grávida desatou aos pulos pelo salão e chamou todos os que trabalhavam no castelo e anunciou:
- Vamos ser pais! O príncipe vai nascer!
A Coelha-Grávida tossicou e com um piscar de olho acrescentou:
- São gémeos, vão ser um príncipe e uma princesa.
- És a Coelha-Grávida mais linda de todo o reino – e beijou-a ternamente.

* - O nome do personagem foi inspirado no desenho A Coelha Grávida de Paula Rego

A ponte

O sol aquecia bem forte e, a o seu calor alimentava a minha pele enquanto que a sua forte luz, encadeva o meu olhar. Para desviar o meu foco, olhei para o céu que não conseguia ver, pois a força do progresso tinha feito uma ponte por cima de mim, tão forte que era tão resistente ao vento quanto os castelos que perduram até aos dias de hoje. A ponte chorava, pois, para além do betão de que é feita, a mágoa dos imigrantes que a fizeram está presente em cada pedaço da ponte. Mágoa por estarem afastados da família, mágoa por enviarem uma caixa com um presente quando, o que queriam realmente era essa pessoa próxima dos seus corações.

Mesmo assim as lágrimas soltavam-se na minha direcção, sozinhas, separadas umas das outras, cada uma a seu tempo, bem definidas e de proveniências diferentes, percorrendo um longo caminho. Eu olhava deliciado vendo-as libertarem-se navegando com o vento.

Depois parti, era hora de voltar ao meu caminho. Quando me afastei, voltei a trazer o meu olhar para a ponte. Porém as suas lágrimas já não se soltavam na minha direcção. De facto poderia dizer que elas já não existiam, simplesmente por não as ver. Apenas vi uma jovem a desfazer-se no horizonte com um vestido encarnado. Porém, acredito que as lágrimas, ainda se continuem a soltar, essas que sustentam a ponte tanto quanto as vigas e o betão querem-se libertar para depois se voltarem a reunir.

A caixa do laço encarnado (Desafio 1)


No fim do cais de madeira, sob a luz moribunda de um sol quase posto, Beatriz agarrava nervosamente a caixa metálica junto ao peito e olhava o seu reflexo na água do lago.

A caixa era como tantas outras, comprada num bazar, durante uma viagem à Turquia, há uma eternidade atrás. Tinha sido uma prenda de Hélder, o seu marido, e a única característica que a distinguia era o laço encarnado em relevo que existia na tampa.

Para Beatriz, a caixa assumia um significado especial porque era onde guardava fotos e outros pequenos tesouros que para qualquer outra pessoa não teriam valor. Eram essencialmente fotos despretensiosas e simples, testemunhas de uma vida repleta de felicidade, amor e paixão. Uma vida que tinha acabado.

A primeira vez que Beatriz viu Hélder foi num palco. Um palco de karaoke de um bar em Istambul. Hélder estava ligeiramente alcoolizado e a fazer uma imitação atroz e hilariante de Queen. Ria enquanto cantava, cantava enquanto ria e conseguia divertir toda a gente que assistia.
Talvez por se encontrar mal-humorada nesse dia, Beatriz achou, à primeira vista, que Hélder era apenas mais um bêbado idiota. O divertimento de toda a situação estava a passar-lhe ao lado, algo que infelizmente acontecia com alguma frequência.
Apesar de não saber bem porquê, Beatriz tinha a consciência de se estar a tornar uma pessoa amarga com o passar do tempo.
Assim, foi com alguma irritação que esbarrou mais tarde com o tal bêbado, ao pé das casas de banho. O bêbado chamava-se Hélder.

Beatriz nunca soube se foi a partir daí que se apaixonou, ou a partir do momento em que o viu em cima do palco do karaoke. Mas isso nunca foi assim tão importante.
Passados 2 anos de namoro, casaram e apesar de não serem abençoados com filhos, orbitavam incessantemente em torno um do outro e as suas mentes estavam repletas de pensamentos lindos sobre como fazer o outro feliz.
Sim, ambos tinham consciência de quão piroso isso era. Mas não serão todos os amores pelo menos um bocadinho pirosos?

Hélder, que era historiador, acabava por viajar bastante, especialmente para o Médio Oriente. E Beatriz, que adorava viajar e estava a terminar o doutoramento em Biologia Marinha, aproveitava todas as oportunidades para ir com ele. A felicidade parecia eterna e o mundo estava cheio de possibilidades.

Até que Hélder a deixou. Deixou-a, e dilacerou-lhe o coração. A velocidade tinha sido um factor crítico, disseram os polícias. O mau tempo, a estrada degradada, a velocidade, mil e uma coisas que provocaram o acidente.
Chamaram-lhe acidente. Lamentavam muito. Se precisasse de alguma coisa, era só dizer. Disto tudo, Beatriz só ouviu uma parte.

A sua vida ruía como um castelo de cartas mal concebido e todos os abraços de conforto lhe pareciam frios, todas as palavras eram vazias. Sentia-se um animal encurralado, que olhava para todos os lados, desesperadamente à procura de um buraco na realidade por onde pudesse fugir. Mas o mundo não é assim tão misericordioso.

Agora, no fim do cais, 3 anos depois, enquanto sentia o vento de Outono a brincar com os cabelos longos, fechou os olhos e deixou as lágrimas correrem livremente pela face. Caíram em grandes gotas em cima das tábuas e rapidamente foram absorvidas pela madeira ressequida.

Beatriz interrogava-se se estaria a perder o juízo. Quando é que tinha começado a ouvir as palavras de Hélder, que pareciam sair da caixa directamente para a sua mente, sem mais ninguém ouvir? Hélder, o amor da sua vida. Ele falava-lhe através da caixa, ela tinha a certeza. Que importa que mais ninguém ouvisse?

Ela sabia que era verdade porque eram coisas que ele costumava dizer. Quando acariciava uma das fotos e fitava intensamente o olhar do seu marido podia quase jurar que ele estava lá, vivo numa outra espécie de realidade. E tinha arranjado maneira de falar com ela, porque ela era especial.
Uma parte da sua mente, bem lá no fundo, uma parte racional que não era afectada pela mágoa que lhe asfixiava o coração todos os dias sabia que isto não era verdade. Mas de cada vez que esse pessimista cantinho da sua consciência levantava objecções era prontamente silenciado. Esse cantinho não tinha lugar na nova realidade de Beatriz.

Ultimamente, Hélder tinha começado a pedir-lhe coisas difíceis. Coisas que faziam sentido, mas que seriam difíceis de fazer. Algo que pediria muita força de vontade, mas que Beatriz sabia que iria colocar a sua vida em ordem de novo. Sim, a felicidade ainda estava ao seu alcance. Hélder estava à espera dela.

Beatriz largou a caixa metálica com todos os seus tesouros lá dentro. A caixa caiu dentro de água com um sonoro “splash” que lhe salpicou os pés nus com água fria. Alguns momentos depois, Beatriz seguiu a caixa e caiu para dentro do lago. Enquanto se afundava na água gélida, olhou para a superfície e sorriu. Tudo iria ficar bem.

setembro por dentro

tirei-te uma fotografia ao rosto da minha janela, quando caminhavas pela rua na minha direcção, sem me veres. sem o saberes, sem eu o perceber também, senti que eras mais que um retrato a ampliar, a preto e branco, numa moldura grande que viria a pendurar numa parede.

estávamos em setembro, aquele mês em que o tempo ainda nos deixa passar noites na praia a conversar com a luz da marginal por trás, à procura de um beijo num intervalo da conversa, em que se começam a escrever nas folhas de papel dos diários histórias que começam com “era uma vez” que duram anos, histórias de amor que começam com a paixão dos estores para baixo em quartos quentes da respiração ofegante de corpos aos pares, e terminam… ou não, quando o nosso destino o quiser.

quis conhecer-te, imaginei enquanto apertava repetidamente o botão os teus lábios macios e um abraço apertado e quente, num instante vi passar-me pelos olhos -  como se à beira da morte - toda uma vida alternativa, e nasceu-me um sorriso nos lábios. quis-te.

estranha sensação esta. pouco depois deixei a janela, e com memória de peixe, esqueci o que tinha pensado e a sensação de alegria que me deixaste. só ficaste tu. num rolo a revelar dias depois, e onde o teu sorriso e o verde invisível dos teus olhos me faria perguntar em voz alta porque não correra para falar contigo.

nunca ninguém pergunta pelo três de paus

Vivo num castelo de cartas tão sólido que resiste à força do vento. São cartas manuscritas, cartas enviadas e não enviadas, cartas recebidas e cartas que quis ter recebido.

O meu castelo é rodeado por um fosso cheio de água, cheio de crocodilos e suas lágrimas, e tem duas portas, ambas cartas de jogar. Uma, a da direita, é um preto três de paus, uma porta de que prefiro não falar. A segunda, a da esquerda, é um encarnado Ás de copas, e só se vai abrir no mais especial dos dias, e para a mais especial das pessoas. Por mais mais forte que empurrasses, por mais rápido que corresses, nem que passasses a velocidade do som a conseguirias derrubar,

se não fores tu a pessoa certa.

Às vezes fico a olhar para a carta encarnada com o Ás de copas, com mágoa suspirante de não a ver abrir-se devagarinho, com o mistério de não saber quem a poderá atravessar.

Vivo num castelo de cartas, na minha caixa de cartas, escritas ou recebidas ou jogadas por mim ou contra mim, e quero ser eu capaz de abrir a porta, sair lá para fora, e deixar tudo isto para trás de uma vez por todas.

O desafio

Com a sua direcção bem definida, o peixe navegava por entre a grande janela que o rodeava e que o guardava da morte certa. Lá dentro para além de ter os pequenos seixos que faziam de terra, havia uma alga que teimava em manter a sua verde cor. Ao peixe aborrecia-lhe a alga, pois esta, estendia-se até lá acima e não era por isso que lhe faltava água. Situação que, no caso do peixe seria fatal. Todo este cenário, que assenta numa folha de papel, podia bem dar uma artística fotografia mas não, é apenas o culminar de uma paixão, de um amor que se julgava durar para sempre, para todo o tempo.

No ano passado, a Cristina, nos aconchegantes dias de Setembro passava os fins da manhã à janela a desfrutar do pequeno-almoço com a perna a baloiçar à janela do primeiro andar. Num desses dias, quando o relógio lhe anunciou que estava na hora de baixar os estores, que era altura de tirar a perna da parede cor do Sol, um moço bem aparentado estava à sua espera à entrada da sua casa com um aquário na mão. Foi esta a prenda, a recordação que ela guarda, daquela paixão que inflamou o seu coração, quando os lábios dele afagaram os seus num beijo que jamais se esquecerá, para nunca, nunca mais se verem.

O Oitédio

O Aurélio é a pessoa mais aborrecida do mundo.

Descende de uma linhagem familiar já com oito gerações de pessoas chatas. Quando se encontram entre si, ou com outras pessoas, pouco falam. Ficam cabisbaixos, silenciosos, metidos consigo mesmos, os 0lhos no chão, em longas conversas interiores e secretas com os botões da camisa e as pedras da calçada. Poder-se-ia pensar ser impossível uma família destas existir: como se conhecem? como constroem relações? São perguntas ingénuas. Existe muita gente quase tão aborrecida como Aurélio e os seus antecessores, e têm uma capacidade especial de se reconhecer entre si, de construir momentos que mesmo se aborrecidos têm chamas de magia, e ao longo dos anos isso sempre chegou para foi juntando cada um dos oito casais da família.

Aurélio é especialmente entediante. A selecção natural apurou-lhe a capacidade de ser chato, ao longo dos anos. Um factor genético, certamente. Ao contrário dos pais e dos avós e dos bisavós, no entanto, Aurélio é chato não por falar demenos, mas por falar demais. Fala desde que acorda até que se deita, fala sozinho, fala monocordicamente, sabe tudo sobre tudo, tem opinião sobre tudo, leu tudo, ouviu falar de tudo. Mete conversa com pessoas na rua que não conhece, com a porteira, com o segurança, com o empregado do café, com um antigo colega da escola primária que não via há quase vinte anos, com a pessoa que espera o mesmo autocarro na mesma fila no mesmo dia de inverno em que está a chover e o dia está cinzento. Não há quem o possa ou consiga calar.

O Aurélio é muito inteligente, e já garantiu a propagação dos genes. Encontrou a mulher ideal para si, que fala desde ainda antes de ter acordado, e ainda está a falar já depois de ter adormecido. Dão-se muito bem, mesmo se não se ouvem um ao outro, só falam, e falam, e falam. Sobre seja o que for, seja onde for, seja com quem for.

Eu conheço o Aurélio, o verdadeiro. Na verdade, até conheço muitos Aurélios, e tu também. Qualquer um de nós pode ser um Aurélio. O meu medo, no entanto, é transformar-me num deles.

O meu nome é Romeu, e sofro de Paixão

Juntei-me aos Apaixonados Anónimos há quase 5 anos, mas já não tenho esperanças de melhorar. Só continuo a ir para conhecer pessoas, ouvir as suas estórias, e dar alguns vagos conselhos que serão completamente ignorados, apesar de ser o mais experiente do grupo.

Tudo começou com a Julieta, claro. Penso que já terás ouvido falar dela, aquela coisa trágica em que morríamos os dois envenenados. Não foi bem assim. Estávamos apaixonados, sim, mas só ela é que morreu. Eu fiquei vivo, e amaldiçoado. Amaldiçoado a continuar para sempre pela vida, como um vampiro, a apaixonar-me por uma mulher depois da outra, acreditanto sempre num ilusório para sempre que nunca chegou e nem nunca deve chegar. Não a mim.

Não me confundas com D. Juan. Esse rapaz, aliás meu bom amigo, joga no campo da sedução imediata, dá umas fintas e meia dúzia de charmes inesperados, e rapidamente chega ao branco dos lençóis para um episódio de novela. Eu apaixono-me, entrego-me, seduzo pelo que sinto e não como desporto, construo sonhos vivos e repletos de energia, com princípio meio e sem fim, acredito. E quando o coração me bate no peito com mais força, vem o veneno da minha primeira pôr fim à esperança. Uma vez depois de outra vez depois de outra vez.

Estou cansado, em casa, sentado à mesa, e tenho o cálice com o líquido verde à minha frente, mais uma vez. Vejo-o contra a luz, admiro a transparência e a côr viva que tem, sinto-me seduzido e convidado a seguir pelo caminho mais percorrido. Acabo no entanto, como sempre, por voltar a pô-lo no pequeno frasco, sem sequer muito hesitar.

Prefiro mil vezes viver com paixão, penso, do que não viver de todo.

O túnel

Aos 5 metros de profundidade, o computador de mergulho no seu pulso indicava que apenas faltava mais 1 minuto para terminar a paragem de segurança.

Na mão esquerda segurava o carreto de fio, que sustentava verticalmente a bóia de patamar, uma bóia laranja, de forma vagamente cilíndrica que indica às embarcações em movimento à superfície que existe um mergulhador por baixo que vai subir em breve.

Para Samuel Martins, esta era a parte mais aborrecida do mergulho. Esperar que os três minutos de segurança passassem. Na maioria das vezes, ficava apenas a olhar para o azul, ora para a esquerda, ora para baixo, ora para a direita, na esperança de ver algum cardume interessante que pudesse distraí-lo durante a espera, mas geralmente não tinha essa sorte. Hoje, parecia ser um desses dias.

Para ser sincero, Samuel estava aliviado por o mergulho ter terminado. Não se estava a sentir bem. Desde a passagem pelo túnel que algo lhe parecia errado.

Ah sim...o túnel. Tinha-o encontrado entre duas rochas de proporções faraónicas, numa área da baía onde não costumava ir habitualmente. Por alguma razão desconhecida da parte consciente da sua mente, nunca se tinha atrevido a explorar aquela zona.
Mas hoje, ignorando os seus instintos, tinha aberto uma excepção e após uns minutos iniciais sem grandes motivos de interesse, avistou o túnel.

A entrada era bastante grande, com cerca de 5 metros de largura, mas a sua altura não excedia 1 metro, 1 metro e meio.

A saída do túnel era bem visível, uma versão mais pequena da entrada, encolhida pela distância, pela qual entrava uma belíssima luz azul. Samuel apaixonou-se instantaneamente pela atmosfera no interior do túnel e pelos deslumbrantes tons de azul que a luz emprestava às paredes da rocha. A luminosidade exterior pregava partidas e parecia inventar novos espectáculos visuais com cada efeito de refracção provocado pela ondulação á superfície.

Samuel entrou no túnel, usando a sua lanterna para observar cada nicho, e cada reentrância. O túnel estava repleto de vida, repleto de criaturas que, apesar de já ter visto em grandes quantidades noutros locais, continuavam a fasciná-lo como se fosse a primeira vez que os via. O mergulho tinha este efeito em Samuel. Fazia-o sentir-se único e abençoado.

Olhando em frente, Samuel conseguia ver a saída do túnel a aproximar-se, apesar da luminosidade lhe parecer algo estranha. Parecia que a água à saída do túnel tinha uma cor ligeiramente inconstante, oscilando suavemente em tons de azul, como se uma membrana transparente vacilasse regularmente. Intrigado, Samuel continuou a sua travessia.

Se lhe pedissem para indicar a zona exacta do túnel em que teve aquela sensação estranha, ele não saberia dizer. Foi algures a meio que sentiu um ligeiro aperto no peito, como se o seu coração saltasse uma ou duas batidas do seu ritmo regular, seguido de uma sensação de frio e náusea no estômago, como quem desce rápido demais num elevador avariado.

Quando chegou finalmente à saída do túnel e emergiu do outro lado, a sensação tinha essencialmente desaparecido...mas havia algo que estava errado. Samuel não sabia porquê, nem como, mas havia algo...diferente. A começar pela cor da água.

Estava estranhamente mais arroxeada.

Agora, com o computador no pulso direito a apitar, sinalizando o final da paragem de segurança, Samuel olhou para a superfície como era seu hábito, no sentido de garantir uma subida sem percalços.

O que viu não registou imediatamente na sua mente como algo de estranho. Como se inicialmente o seu cérebro se recusasse a acreditar.

O sol não estava no céu. No céu, através da superfície da água, o que Samuel via era duas estrelas. Uma mais avermelhada e a outra muito maior, mais brilhante e de tom amarelado. Duas estrelas, dois sóis. Samuel não compreendia. Simplesmente, não compreendia.

Lentamente, começou a enrolar o que restava do fio no carreto e subiu até à superfície. O oceano, em tons de roxo azulado estendia-se até perder de vista. Olhou para cima. Os dois sóis continuavam lá.

De repente, a magnitude do acontecimento assaltou o seu cérebro e Samuel encarou o horror como um homem que descobre que a realidade é muito diferente do que pensava. Que sítio era este? Como veio aqui parar e porquê?

Não fazia a mínima ideia em que planeta ou em que dimensão espácio-temporal estava. Assim, o seu acto seguinte acabou por ser lamentavelmente irreflectido, apesar de ser inevitável que o fizesse, sobretudo quando a sua reserva de ar acabasse.

Ainda dormente com tudo o que lhe tinha acontecido, e reconhecidamente não em plena posse das suas faculdades mentais, Samuel tirou o regulador da boca e susteve a respiração. Após alguns momentos de medo, reconheceu a inevitabilidade da situação, fechou os olhos e esperou pelo melhor.

Inalou timidamente, e gases desconhecidos à ciência humana entraram-lhe nos pulmões e provocaram-lhe convulsões musculares muito violentas.

Foi com um estalo audível que morreu, quando a sua coluna vertebral se estilhaçou com a força das contracções musculares.

Samuel Martins, médico, mergulhador, flutuava morto, num oceano alienígena de um planeta distante.

Mais uma vez, o mergulho tornara-o único. Mas desta vez, não tinha sido particularmente abençoado.

Vingança

A cidade parecia morta. Nem o movimento decrépito do fim de tarde, nem a brisa suave que remexia as folhas em cima da relva conseguia atenuar a sensação de decadência que a invadia quando olhava lá para fora. A cidade estava morta.
A felicidade e a paixão há muito que se tinham demitido da sua vida. Sem saber muito bem como, as coisa tinham mudado. Aos poucos, a princípio, e depois...Bem, depois as coisas precipitaram-se.
Agora, agarrava nervosamente a faca de cozinha na mão direita, apertando o cabo, esforçando-se por sentir alguma coisa... Textura, forma. Mas não sentia nada. Apenas sentia o seu fel pessoal e a sua sede de vingança.
Era óbvio onde o cabrão estava. Estava algures na noite, a “pimpolhar” uma gaja qualquer.
Ah, mas ela iria pô-lo na linha. Ia sim senhor.
Uma chave entrou na porta da rua, a porta abriu-se, e a luz amarela e doentia de lâmpadas incandescentes inundou o corredor.
Ele estava morto, e não sabia. Tal como a cidade, lá fora.

O bolo

Eu trago a farinha
Tu juntas o açúcar
Ele adiciona o fermento
Nós pomos no forno
Vós regulais a temperatura
Elas comem o bolo

Conjugações

eu gosto de apanhar Sol
tu gostas de apanhar Chuva
ele gosta de apanhar Neve

nós gostamos de nos apinhar nas filas de espera
vós gostais de apinhar as filas de espera
elas gostam de apinhar aqueles que se apinham nas filas de espera

diz-se nos fóruns da in-ter-net

muitas coisas que são mentira. mas também há por lá, nos fóruns da in-ter-net, muitas verdades incómodas, e muita sabedoria disfarçada.

agora há muitos anos que não vou aos fóruns da in-ter-net, mas antigamente ia lá muito. foi lá que te encontrei, que te conheci e que te namorei, foi lá que casámos, numa cerimónia de palavras trocadas em mensagens e respostas, e apadrinhada por todos os que nos quiseram ler ou interferir com inveja mal disfarçada.

foi lá que vivemos o nosso romance intenso e apaixonado, nos fóruns da in-ter-net. como se fosse o nosso pequeno filme, a nossa curta metragem a muitas cores, a namorar palavras entre uma mensagem e outra, num sexo animal que os corpos nunca poderão reproduzir de igual forma.

depois desligaram a in-ter-net, e nunca mais te reencontrei.

Sete cincos

Cinco dias me enfrentaram
Cinco palavras me escaparam
Cinco dedos me agarraram
Cinco minutos me fugiram
Cinco abraços me deram
Cinco pétalas de uma flor
Cinco crianças me sorriram

A paixão

Estava apaixonado. Assim, sem mais nem menos. O amor tinha-o agarrado pelos colarinhos, sem pedir permissão, e fazia dele o que queria.
Se ao menos as circunstâncias fossem menos complicadas. Mas não. Se tinha de lutar, que assim fosse. Se tinha de fugir, pois bem, venha de lá essa fuga.
Ao pé do quiosque cinzento, por debaixo de uma árvore decrépita, por debaixo de um céu opressor, ele esperava. Ela tinha de vir. Simplesmente tinha.
Enquanto esperava, pensava nas noites excitantes e assustadoras que tinham passado juntos, num grau de intimidade destilado à exaustão, duas almas nuas e sem segredos que se orbitavam incessantemente.
Ela tinha de vir. Um táxi parou e uma mulher apeou-se. Não era ela.
Voltou a olhar para o relógio. Onde poderia estar?
Uma flor escarlate de sangue surgiu no centro da sua testa e um buraco gémeo materializou-se na nuca. Caiu no passeio frio, sem perceber o que aconteceu. Ela nunca viria.
Mas o marido tinha acabado de chegar e guardava a arma fumegante no bolso do sobretudo, enquanto os gritos nasciam um pouco por todo o lado.

Aluguei o cérebro

A crise tem destas coisas. Para fazer face às inúmeras despesas do dia-a-dia, sustentar os vícios e as colecções de pastilhas, em que pontifica um pacote de 5, novilho em folha, de pastilhas Gorila verdes dos anos 80. Sim, aquelas que se punham todas de uma só vez na boca ao mesmo tempo até deixar de conseguir falar, com uma expressão alegre e atrapalhada na boca. Vale quase 4000€, há muitos que mas querem abocanhar, malandros!

Mas dizia eu antes de me distrair. Agora acontece muito distrair-me. Às vezes parece que sei porque é, mas quando estou quase a pôr isso por palavras, esquece-me o que ia pensar. Não é que isto de me distrair aconteça com muita frequência. Se pensar bem nisso, a última vez já foi há praí um mês e espinhos. Ainda me recordo assim mais ou menos e tudo.

Porque dizia eu antes de me distrair, e isto sim é do que queria falar. Estou aqui a bebericar um rosê enquanto escrevo para ver se me concentro. Estar a escrever com um copo na mão é curiosamente mais fácil do que escrever desarmado. Onde é que eu ia?

Ah. Estava a falar do que ia dizer antes de me confundir com os vícios e excepções. Aluguei o meu cérebro. É. Vi nos fóruns da internet, estavam a pedir voluntários, e para sustentar os meus vícios e as minhas colecções de pastilhas, decidi alugar o meu cérebro. Li uma vez numa revista que só usamos 10% do nosso cérebro, por isso decidi alugar os outros 90% para fazer investigação médica e descoberta de vida fora do sistema solar. Parece que há muita gente que anda assim, com a cabeça na lua e até mais longe.

Posso dizer que já ando há uns 8 meses nisto, e que não há risco nenhum. Tenho tido aí outros problemas, enfim o normal nestes tempos modernos, mas não tem nada a ver com isso do cérebro. É mesmo verdade o que dizem. Só usamos 10%.

O que acontece quando deixamos de fazer planos?

Exercício Final
Escrever Escrever, 13/08/09

Mais célebre que o Cristiano Ronaldo, para o qual já não havia paciência – coitado, a culpa era das revistas cor-de-rosa, dos canais de televisão, das marcas e marketeers – mas mais célebre e respeitado que ele pelo menos ali no bairro, vivia o Tartamundo que tinha sempre a barba por fazer e as pestanas reviradas.
Tartamundo era afixador de cartazes na Cidade das Letras Esquecidas e tinha sempre planos: planos para amanhã, planos para depois de amanhã, planos para as férias, planos de ontem para um dia destes, entre muitos outros planos.
Num dia em que chegou mais uma remessa de cartazes para afixar pelas ruas da cidade, Tartamundo leu num cartaz acabadinho de desenrolar:
“A vida é o que acontece enquanto estamos ocupados a fazer planos”
A frase, que vinha assinada por Thomas La Mance, ficou-lhe ali a ecoar no espírito durante uns tempos. Tartamundo não sabia quem era aquele senhor, mas achou que bem visto, bem visto, ele tinha razão!
Tartamundo que vivia com mãe quase cega de uma vista e infectada de preguiça poética, partiu rumo ao Oriente sem esforço (e sem grandes planos) para sentir a liberdade do anonimato e apreciar em toda a sua plenitude a tão anunciada chuva de pirilampos.

Durante a viagem, num comboio em movimento lento conheceu a Nely, a doce Nely. Tinha um cheiro adocicado viciante mas não enjoativo de menina feita de pão de leite.
Era uma mulher dos seus 50 anos que havia nascido com aquele cheiro colado na pele que para ela era um cheiro maldito que tantas amarguras de amor lhe tinha trazido.
Sentada muito direita, tinha uma timidez compensada com a secura no comportamento que deixava Tartamundo com vontade de lhe dizer:
- Não fales, não estragues!
Ele que ia sentado no banco de frente para ela, pensava:
- Podia ser a Paixão da minha vida!
Esse desejo muito reprimido veio á tona... Esse desejo de ter uma mulher apaixonada por si e para si.
Estava farto de amores rápidos que não crescem como tinha sido com a Madalena, com a Guarda Freixo e com todas as outras.
(...)
Um dia destes acabo o exercício!

Uma Analogia Interessante




Leonor e a timidez

Quando ninguém diria que Leonor era tímida, a verdade é que a timidez fazia parte da sua vida de forma constante e quase epidémica.
Sem saber muito bem porquê, era-lhe difícil conseguir falar habilmente com os outros e deixa-los entrar na sua esfera de intimidade nos momentos certos.
Quase sempre cedo demais, ou tarde demais, estas incursões ocorriam amiúde e estavam quase sempre condenadas ao desastre.

A sua timidez era compensada com alguma secura no comportamento habitual, o que era confundido frequentemente com arrogância. Tragicamente, esta dança de mal-entendidos, de mensagens mal enviadas e mal recebidas resultava num turbilhão emocional a que era difícil fazer frente.
Assim, embora abençoada com uma beleza clássica, Leonor continuava sozinha, interrogando-se sobre o que falhava nos seus relacionamentos.

Após uma infância passada no extremo Oriente, Leonor, de 21 anos, vivia agora em Lisboa, com o seu irmão mais velho, com quem partilhava uma casa moderna e espaçosa.
A dança era a sua grande paixão na vida, talvez instigada pela carreira brilhante dos seus pais, um par de dançarinos reconhecidos internacionalmente como sumidades da valsa.

Um dia, foi a dança que lhe mudou a vida. Parte da sua timidez foi finalmente conquistada quando Leonor decidiu entrar para uma escola de dança. E foi lá que conheceu David.
David, que conseguia ser ainda mais tímido que Leonor, afinal também tinha um sonho secreto.

As sestas do Unicórnio e do Coelho no Castelo Abandonado

História Infantil para alguém acabar

Era uma vez um unicórnio e um coelho muito amigos desde o tempo em que andavam no jardim infantil.
Tinha sido uma amizade á primeira vista e em comum partilhavam a tristeza de serem obrigados a dormir a sesta, todos os dias das das 14h00 ás 15h30.
Esta insatisfação com a sesta tinha porém cimentado a sua amizade, porque ficavam acordados nas caminhas de campanha a segredar baixinho as histórias do Castelo Abandonado.
Naquela noite, o Castelo Abandonado estava iluminado e ia ser palco de uma reunião de seres fantásticos do mundo inteiro: a Bruxa do Caldeirão, o Monstro dos Sapatos, a Àrvore Falante, a Princesa Enfeitiçante entre muitos, muitos outros.
O Monstro dos Sapatos foi o primeiro achegar e como era o maior de todos ficou responsável por colocar a grande escada nas muralhas do castelo por onde todos os companheiros iriam subir para entrar.
Já passava das 10 horas da noite e estavam sentados á mesa onde tinham jantado magnificamente porque a Bruxa do Caldeirão, responsável pelo jantar, havia cozinhado uma sopa de estrelas e relâmpagos crocantes que a todos tinha deliciado.
A Árvore Falante aproveitou as dez badaladas e meia vindas do Relógio Morcego, tossicou e disse:
- Amigos do mundo fantástico, estamos aqui reunidos com o importante propósito de decidirmos onde vamos passar o nosso Natal este ano. Alguém quer fazer uma sugestão?
...

Luísa Carreira perdeu o emprego

Por Cheila, Jota & Mary
Luisa Carreira tinha perdido a agenda e as chaves de casa na semana passada, há dois meses tinha sido o telemóvel... realmente andava de cabeça no ar.
Agora, o mais improvável tinha acontecido e a questão ecoava irónica dentro de si: Como é que alguém de apelido Carreira, perdia o emprego?! Como?!! Não se conseguia lembrar onde o tinha deixado pela última vez....

Procurou nos bolsos, sem sucesso. Na mala, sempre repleta, quase se perdia a si própria. Tentou o telemóvel, ainda quase sem contactos. As vozes familiares dos amigos franziam as sobrancelhas, “Deves estar a brincar, Luísa. Só tu!”, e entre risadas acabavam por terminar as conversas. “E agora?”, perguntou-se. Estava sentada no carro, oito da manhã, as pessoas iam saindo apressadas em seu redor. Completamente desperta, e sem saber para onde ir. Bolas. E agora?

E agora? Como é que faço para fazer crescer os bigodes do gato? - pensava Luísa com todos os botões que tinha naquela altura. Foi a correr para casa e assim que chegou agarrou num lenço branco que se encontrava na cómoda da cozinha e atou-o na perna esquerda da cadeira que ali se encontrava. Dirigiu-se à aparelhagem e colocou a rodar a faixa nº3. Shriiink!! Abadu abadu!! Vik Vik Raidu!! Palavras estranhas ecoavam ao mesmo tempo que fazia uma dança completamente acabada de improvisar.

Tinha lido um livro de mézinhas indianas e esta era a sugerida como infalível para se encontrar coisas que tinham desaparecido. Dez minutos depois estava tonta, caiu no chão e fechou os olhos até a tontura passar. Recuperada, após alguns minutos, levantou-se, tirou o elástico que prendia o rabo de cavalo e por momentos achou que estava a ver mal.... Freud, que explica sempre tantas coisas, conversava animadamente com Woody Allen sentados á mesa na sua cozinha. Dissertavam sobre onde estaria o emprego que a Luísa tinha perdido. Mais surreal era impossível então Luísa fechou os olhos de novo e voltou a abri-los, mas eles continuavam ali e o Woody olhou para ela e num português aespanholado disse:
- O teu emprego está...

… na gaveta da sala, onde o deixaste antes d’ontem.
Há alturas em que não vale a pena questionar nada, e com um encolher de ombros mais imaginado que real, virou costas e foi para a sala. Abriu a gaveta, e percebeu que o gato Woody tinha razão. Estava lá o emprego perdido! Não sabia o que estaria a fazer ali, mas era certo ter sido ele a escondê-lo. Certamente por vingança por lhe ter cortado os bigodes. Mas ele mereceu. Devia ter adivinhado que comprar um gato em Salamanca não seria boa ideia, malandro.

Ali estava ele...o emprego...que não era mais nem menos a pílula do dia seguinte. Esses acasos nocturnos...ou diurnos...enfim...casos e acasos remetem directamente para uma responsabilidade que Luísa Carreira desconhecia. Por isso é que se dedicou sempre à dança...actividade que dispensa qualquer tipo de material didático se não o próprio corpo.

Eu andava à procura de um sítio sossegado para morrer

Eu andava à procura de um sítio sossegado para morrer e, desta forma fui à procura de um emprego.
Três meses num, quatro meses num outro. Aquilo dos hotéis era uma treta.Com todos os meus irmãos ligados à restauração e eu perdida entre hóspedes picuinhas e chefes surreais resolvi partir para Itália depois de ler aquele poema rasgado ao qual acrescentei as palavras que tinham desaparecido.
Quando lá cheguei estava um caos, trabalhei em restaurantes, fazendo bolonhesas e pizzas até que esparguete me começou a crescer no cabelo. Aí parei. Senti que não podia mais.
Descobri uma gruta, por entre uma cascata, onde apenas crescem lindos endemismos. Nesta parca luz, resolvi tirar a revista que jazia na minha mochila por entre o farnel delicioso que lá estava, Tinha uma fotografia de uma mulher em uniforme com uma postura confiante. Na folha do lado tinha um anúncio de gelados e descobri que tinha de me juntar aos meus irmãos. Eu ia trabalhar na restauração, com gelados. Assim, aproveitei e aprendi os tradicionais gelados italianos.
Quando voltei, fui para Coimbra e vendi as duas moedas que de nada me valiam. Apenas gostava das palmeiras estampadas no verso e do teatro em relevo na frente. Um desvairado de um coleccionador, deu o suficiente para começar a minha gelataria em Coimbra e, assim descobri a doçura da vida.

Imaginar uma personagem que perdeu o emprego…

Sebastião Ferreira nasceu em Linhares de Cima, uma aldeia da Beira Baixa, no seio de uma família abastada e conservadora.

O seu pai, Hipólito, apesar de se dar a ares de superioridade moral, era em segredo um viciado em sessões de sexo com prostitutas, apimentado com aparelhos improvisados de sadomasoquismo. Quanto mais velhas fossem as senhoras, melhor.

Toda a gente da aldeia sabia desta obsessão, e embora não fosse claro quantas senhoras viviam confortavelmente à custa do pai do Sebastião, dizem as más-línguas que seriam muitas. Margarida, a mãe de Sebastião, parecia ser a única pessoa da aldeia que insistia em não ver o que se passava. Mulher carinhosa, mas sufocante, Margarida era o centro de incontáveis piadas de mau gosto, gozada abertamente e em segredo, um pouco por toda a gente, tal como Sebastião. “Filho do papa-putas”, era como lhe chamavam a maioria das crianças da aldeia.

Foi neste ambiente que Sebastião cresceu, rodeado por hipocrisia e obsessões mal escondidas, e tal como a sua mãe, desenvolveu uma capacidade espantosa de ignorar o óbvio e de ser bastante selectivo sobre a percepção da realidade que o rodeava. Como seria de esperar, apesar de ser um mecanismo de defesa bastante eficaz, esta deturpação da realidade acabava por semear a confusão emocional a um nível quase absoluto.

Sebastião cresceu a odiar o pai, embora não o soubesse conscientemente, e não era apenas pelo sofrimento que ele lhe causava indirectamente ao querer copular com qualquer prostituta com mais de 60 anos. Era também porque era um pai austero e controlador. Hipólito era uma figura imponente, sempre pronta a esmagar qualquer centelha de criatividade, sempre pronto a destruir qualquer relâmpago frágil de alegria. Sebastião precisava de ter constantemente um semblante carregado, um sobrolho franzido e compenetrado, pensamentos centrados na eficácia e no cumprimento de objectivos. O seu pai não queria um filho, queria um robot.

Quando tinha 18 anos, Sebastião mudou-se para Lisboa, para estudar Direito, tal como esperado pelo seu pai e pelo resto da corja a que tinha a infelicidade de chamar família. Secretamente, Sebastião ansiava ser pintor, mas esse sonho foi prontamente obliterado pelo seu pai, após uma menção ingénua numa conversa casual. Desde aí, Sebastião aprendeu que nunca deve discutir sonhos e ambições com o seu pai, e na prática, deve falar com ele apenas se estritamente necessário.

Assim, ano após ano, Sebastião foi cumprindo os seus objectivos até se formar em Direito, tendo arranjado emprego pouco tempo depois, numa respeitável firma de advogados.

O trabalho é a fundação da sua vida, não porque o considere extremamente importante ou apaixonante, mas simplesmente porque não há outra coisa. Actualmente, Sebastião vive sozinho num apartamento moderno e espaçoso, que lhe parece sempre demasiado grande e vazio. Dia após dia, evita pensar em todo esse espaço vazio, porque por mais que se esforce, não consegue perceber o que lá falta. Isso frustra-o e desespera-o a um nível demasiado intenso para ser irrelevante. E assim, se evitar pensar nisso, a sua realidade continua agradavelmente editada de acordo com o que lhe parece suportável.

Ironicamente, depois de passar a maior parte da sua vida a tentar distanciar-se do comportamento omnipresente do seu pai, Sebastião acaba por reproduzi-lo quase perfeitamente. A sua triste realidade também é contaminada por uma obsessão sexual, não por prostitutas idosas, mas por rapazes pré-adolescentes. Infelizmente para Sebastião, não há truque ou mecanismo de defesa que consiga editar este problema e a sua obsessão secreta é motivo de enorme vergonha e desespero.

Não sendo uma pessoa totalmente estúpida, Sebastião já passou horas incontáveis da sua vida a tentar perceber o problema, a tentar decidir o que fazer, analisando meticulosamente todos os pontos de vista, e já gastou rios de dinheiro em psicoterapia. Embora não tenha resultado completamente em termos práticos, pelo menos ajudou-o parcialmente a controlar os seus desejos e a ficar sempre do lado certo da lei.

Hoje, Sebastião perdeu o emprego. Alguém descobriu o seu pequeno problema e convidou-o a sair da firma de advogados onde sempre trabalhou. Aparentemente, é completamente irrelevante que nunca tenha feito nada de mal e nunca se tenha metido em problemas. No fundo, Sebastião já receava que qualquer coisa deste género acontecesse um dia. Que a sua frágil capa de respeitabilidade se desmoronasse e a sua ferida purulenta ficasse à mostra.

Segundo o seu chefe, a firma não precisa desse tipo de publicidade, e se não sair a bem, sai a mal.
Decidiu sair a bem.

Há horas que está na esplanada do café a pensar sobre o que fazer. Já lhe passaram montes de coisas pela cabeça, incluindo entrar pela firma adentro aos tiros de caçadeira, e a gritar “E que tal esta publicidade, chefe?” KABLAM!!! Mas é claro que não vai fazer isso.

A frágil fundação da sua vida acabou de explodir, como uma bola de sabão que passou o prazo de validade e na prática, está a aperceber-se que nem se importa assim tanto com isso.

Talvez agora possa vender a casa, comprar telas e pincéis, e dedicar-se à pintura.

O Avô e o Chá de Menta

Estou sentada na varanda do meu terceiro andar emprestado a fazer o que há muito não fazia: estar simplesmente sentada. Sem música, a fazer nada, contemplo a paisagem, simplesmente contemplo.
Oiço os sons da rua: conversa entre vizinhos sobre o preço do pão, estores a fechar, o ladrar de uma matilha no fundo da rua, a porta de um carro a abrir, um avião que sobrevoa a cidade...

- Um dia vais sentir necessidade de o fazer, Isabella! - dizia o meu avô.

Após a morte dele e à medida que fui crescendo, cada vez mais se tornaram claras as nossas conversas à hora do almoço.
- Isabella, sabes porque é que a tua mãe bebe tanto chá de menta?
- Não, avô.
- Porque ajuda muito na digestão. E achas que ela gosta?
- Não sei. Gosta avô?
- Não, pequena, não gosta. Ela bebe porque faz-lhe bem, mesmo não gostando muito da infusão. Isabella, o que te pretendo dizer é que gostava que quando fosses grande não fizesses aquilo que não gostas, mesmo que traga inúmeros benefícios. Sempre que possível, junta o chocolate ao prazer de comer.
- Eu gosto de chocolate!

À medida que crescemos é que damos valor à experiência dos que sabem. Depois, juntamos essas experiências às nossas e assim se criam novos comportamentos.
Foram precisos vários anos para perceber que o que me sacia afinal, não era tanto um chocolate, mas muito mais uma fatia de um bolo de bolacha.

SEXTA-FEIRA, MAS QUE SÁBADO!

Sexta-feira. Olhei para o relógio. Faltam 5 mintuos para 18h. Cinco minutos para sair deste cúbiculo, prisão, monotonia...há quem lhe chame de escritório. É o barulho do ar condicionado, é o barulho dos computadores, é o barulho de dedos a tocarem no teclado...
Olá, sou o Vitor e este é o pequeno inferno onde trabalho.
Às 18h sai apressadamente e dirigi-me até à estação de comboios. Não tenho carro e já é quase noite. Não tem problema. Afinal, não tenho ninguém à minha espera. Estação após estação, aproxima-se a minha saída.

Da estação a minha casa é um estantinho. A parte boa deste trajecto que faço sózinho é este jardim com este cheiro tão característico da minha terra. Bragança. Podia ser o amor da minha vida, mas para ganhar dinheiro nem sempre se pode estar onde se quer.

Paro em frente à minha casa e penso: "Sinto-a como uma casa assombrada! Sinto-me sózinho!" Preciso de alguém que preencha as quatro paredes onde vivo, que lhe dê alma, que lhe dê vida.
Sábado de manhã nem me quis olhar ao espelho, não preciso que o meu reflexo me diga que tenho a barba por fazer. "Ai! Estou numa encruzilhada!"

Decidi ir até à biblioteca local. Biblioteca de poucos livros, mas também não tencionava pôr a leitura em dia.
Estou sentado numa mesa ao canto, gosto de observar as pessoas, compreender os motivos que levam os corpos virem até este lugar. Haverá muitos como eu?
Tiro de dentro da minha mala uma garrafa de água. Abro-a e bebo-a.

"Peço desculpa mas não é permitido líquidos na biblioteca!" - oiço alguém dizer. A voz era suave. Olho para trás a ver quem falava. Não eram dez miúdas com baton, mas sim uma mulher pequena e sem qualquer tipo de máscara, sem qualquer adereço...a simplicidade em pessoa. Por momentos não consegui fechar as pestanas. Podia até dizer que me tinha apaixonado naquele momento, mas estas loucuras nem sempre trouxeram bons resultados. Estava farto de amores rápidos e que não crescem. Preciso de mais: a mesma liberdade e menos desilusões.
"Vou convidá-la para sair, vou perguntar que cor preenchem os seus olhos, se tem a música como vício...pfff...ou se quer sair comigo...ah...já tinha pensado nisso antes...mas também deve ter sempre planos..Afinal, de que gosta uma bibliotecária?..."

"Como se chama?"
Não acredito...no meio de pensamentos nem reparei que ainda contínuo petrificado a olhar para ela.
"Victor." - Disse eu.
"Prazer, sou a Alice!

Alice, pensei eu. Não fales, não estragues. Vamos permanecer os dois, aqui, e saborear o que o silêncio tem para nos oferecer.

Quando for grande não quero ser...

...um círculo. Por vários motivos prefiro ser um quadrado. Trabalhar quatro dias por semana, fazer quatro coisas que me envolvem por completo. Se fosse um círculo estaria sempre a rodar e não conseguiria parar...seria uma vida extenuante. Sendo um quadrado consigo parar nas coisas, vivê-las de tal forma que só continuam a ser "coisas" porque o dicionário ainda não tem uma palavra que me defina e defina esses momentos. A sério, não estou a ser demasiado geométrica! O círculo já é perfeito e eu...eu quero ter a oportunidade de arredondar os meus cantos e, quem sabe, ficar bem redondinha.

Rafael e a Viagem sem Fim

Chamo-me Rafael, tenho 27 anos, e sempre adorei viajar de comboio. Quando era miúdo, lembro-me de ser acordado às 6 da manhã pelos meus pais, no meio da bruma matinal, para uma viagem de 4 horas e ligações até ao nosso destino de Verão.

Anos depois, fiz viagens semanais para o norte profundo, para um namoro semanal como o dos pássaros. Passa-se muita coisa num comboio em movimento, não é só o mundo que corre lá fora.

Um dia, ao abrir a janela de manhã, pensei: estou irremediavelmente deprimido. Era bom que assim não fosse, e até conseguia sorrir com prazer, mas não estava a dar. Fui para a Estação Oriente, pedi um bilhete para o próximo comboio a passar. Perguntaram-me o destino, tentando ajudar, mas sabia que não queria que me dessem a mão. “O próximo, e para longe.”

Apanhei-o por pouco, o relógio a tiquetaquear, tive de correr na plataforma. Era um comboio regional à antiga, e o suor escorria-me pela cara quando me sente, com o calor da corrida e da carruagem de metal.

Não queria pouca, mas muita terra, o corpo pedia-me como louco que me tornasse anónimo no meio de Vítores, Gilbertos, Alices e tantos outros ao meu lado.

Quando a viagem chegou ao fim, depois de quarenta e sete paragens, no interior do país, decidi prolongar a minha estadia no comboio, e entrei noutro para outro destino, para uma viagem interminável. Só com uma mochila às costas, passei por todo o lado, até os nomes dos sítios perderem significado e a barba se avolumar no rosto. Era uma espécie de maldição, senti, mas tinha preguiça de deixar aquela liberdade.

Quando passei a fronteira da Croácia, e andava pelos corredores das carruagens à procura de onde me sentar, vi-a a vir em direcção a mim. Também com uma mochila às costas e um brilho triste nos olhos profundos, morena e com ar estrangeiro. Mantive o passo, mas por dentro já estava a correr.

Se tivesse tido tempo de pensar, teria pensado que ela podia ser a paixão da minha vida. Mas não tive. Encontrei maneira de meter conversa, atabalhoadamente. Chamava-se Snjezana, que em português significa Floco de Neve, e na conversa que conseguimos ter senti que os dois sorrisos de viajante se iluminaram, com uma tontura de prazer confundida com o balançar da carruagem.

Horas depois, na carruagem-cama, quando nos beijámos e tocámos pela primeira vez, e depois do silêncio em que não se pode falar para não estragar, fizemos o nosso contrato vitalício:

Continuar sempre aquela viagem sem rumo. Mas agora, a dois.

Quando for grande não quero ser…

… nem informático, nem advogado, nem jornalista, nem trabalhar num escritório com ar condicionado, o dia todo sentado numa cadeira à frente das mesmas pessoas e do mesmo computador, a ver a rua lá fora.

Não quero fazer as mesmas coisas todos os dias, ter de levar o raio do carro à inspecção, perder horas de vida no trânsito, a beber café para combater o sono que tenho TODOS-OS-DIAS.

Não quero pagar contas, conhecer poucas pessoas, não ter tempo de ir a sítios, não quero ter amarras nem grilhetas, não poder passar todos os dias a viajar e ouvir línguas estranhas.

Não quero irritar-me, poluir o ambiente, fazer barulho, ter tristezas.

Não quero estar sozinho, e não quero ser só mais um dos muitos biliões de pessoas que já viveram neste planeta com tanta cor para conhecer.

Delfim, o cão Garfield

Céu azul. Quase meio-dia. Comida no prato.
A abanar a cauda e a intercalar o movimento das quatro patas, Delfim segue o cheiro delicioso de biscoitos de cenoura e tomate seco. Num movimento mecânico abre e fecha a boca, espalha a sua baba incolor e fedorenta em redor e ingere o mastigado. No fim, tomba bruscamente no chão de pança cheia.
Com alguma resistência a má disposição força-o a levantar. Tenta mover-se, mas sente que acabara de engordar uns 20kg e o estômago não lhe facilita a tarefa.
Ao aproximar-se de um armário próximo, vomita.

Houve um tempo em que a minha janela se abria …

Houve um tempo em que a minha janela se abria … para um sonho de pescador. Pela manhã, muito cedo, entrava com a aurora uma brisa fresca de sal e na neblina dançavam os primeiros raios de sol.

Quando o clima o permitia, pegava por vezes no óculo de longo alcance, oníricamente atávico, e dirigia o olhar para a linha do horizonte. Via baleias aproximarem-se com esguichos esfuziantes, passando ao largo em parada de saudação, as largas barbatanas acenando e mergulhos circenses precedendo o consolo da reentrada no abismo uterino.

Logo abaixo da janela que se abria nestes encantos, os peixes ziguezagueavam, cristalinos, em todas as direcções e embora os motivos me parecessem a princípio desconhecidos, lembrava-me depois do teu nome, quando via as letras douradas semi-submersas na dança dos cardumes.

Às vezes, lá muito em baixo, junto ao molhe, passeavam os vizinhos ao pôr-do-sol, ela feita de areia dourada, viva de olhos da cor das águas, ele barbudo e ensimesmado, negro de sal e de sol, com o braço na cintura dela, sirénica.

Às vezes o sonho resvalava para um negrume baço e o vento tacteava os vidros procurando avisar-me do mar revolto das noites d’insónia.

Charles Sometree

Houve um tempo em que a minha janela se abria para…

… as traseiras do prédio, onde havia um pequeno pátio para as crianças brincarem. Mas agora já não. Eu fechei-a no Verão passado, com grades de aço temperado, junto com todas as outras janelas da casa.

Ao princípio, era para fazer frente à criminalidade crescente que surgia na vizinhança, mas acabou por provar a sua utilidade vezes sem conta, desde que a Epidemia começou. Entretanto, coloquei vários armários encostados às janelas, para mais facilmente esconder a minha presença. Posso dizer-vos que não foi nada fácil.

Não sei como é que a Epidemia surgiu, nem quando nem porquê. Acho que por esta altura, isso já nem é realmente importante, e desde que as rádios e televisões deixaram de emitir que não consigo ter uma noção do que se passa lá fora. A semana passada ainda vi...

(frase ininteligível, manchada de sangue)

Estou infectado, não tenho muito tempo...Morderam-me na mão esquerda à cerca de 2 horas e já começo a sentir os primeiros sintomas de rigidez e baixa de temperatura.
Foi um erro táctico, só isso. Devia ter ficado cá dentro como sempre, devia ter ficado escondido e esperado que eles se fossem embora, mas quando ouvi os gritos do miudo, tive de o ajudar.

Merda. Se calhar foi porque me sentia demasiado sozinho, porque já não falava com ninguém há meses, ou porque estava farto de ser um cobarde. Não sei. Só sei que o miudo morreu. Eu cheguei tarde demais. No meio da confusão e da luta que se seguiu, consegui escapar, mas agora eles sabem onde estou. Estou a ouvi-los lá fora, a bater na parede, a arranhar a porta, a gemer. É um barulho enlouquecedor. Só queria que...

(frase ininteligível, manchada de sangue)

Eu sei que eles vão conseguir entrar cá dentro mais tarde ou mais cedo. Nunca vão parar, não têm medo e têm todo o tempo do mundo. Se alguém encontrar esta mensagem, só queria que soubessem que eu não me escondi aqui dentro sozinho por ser egoísta. Escondi-me por estar assustado. Tanto quanto sei, a superfície do mundo é agora uma massa humana de biliões de individuos, que apesar de mortos, insistem em andar por aí. Acho que isso é suficiente para assustar qualquer um.

Mas eu não me vou tornar num deles. Ainda tenho a minha pistola, e vou usá-la quando acabar de escrever esta carta.

 

A pistola já não tem balas. Puta de ironia. Tenho de descobrir uma outra forma de destruir o meu cérebro. É a única maneira de não me transformar num deles.

Vou ter de pensar em qualquer coisa. Rapidamente.

TPC 1 Escrita Criativa

Houve um tempo em que a minha janela se abria para outros universos...
Pela noitinha, depois do copo de leite com a bolachinha do signo e do beijinho da mãe, a luz do quarto era apagada. Lá ficava, a habituar o olhar á escuridão do quarto, acto pacífico e sem ansiedades de maior, porque naquele tempo a vida corria sem muitas preocupações. Seria até mais correcto dizer que a vida não corria, passava lentamente. Toda a gente sabe que quando somos pequenos, as semanas e os meses são muito mais compridos e um dia deve ter aproximadamente 24 horas e mais 10 de noite.

Habituado o olhar á escuridão, era possível vislumbrar o roupeiro branco de frente para a cama, no lado esquerdo da parede, algumas das prateleiras do móvel, a arca de palhinha ruiva e entrançada onde se guardavam algumas coisas menos precisas mas dotadas de boas recordações, e as janelas pelo intervalo no cortinado florido.
Era precisamente desse intervalo que o homenzinho de fato e chapéu preto aparecia de lado a espreitar o quarto. Sentindo-se seguro, dava o primeiro passo...
Nunca foi possível ver aquele homenzinho de frente ou de costas, ele só existia de lado, era como se fosse um perfil vivo.

Após as primeiras aparições, passado o susto inicial e engolindo a inevitável lógica matemática dos adultos:
- Não está aqui ninguém! Não está aqui nada... vês?!
E quando a luz voltava a ser apagada, o homenzinho voltava sorrateiro e silencioso de dentro do roupeiro onde se tinha escondido á cautela.
Com o passar do tempo, habituaram-se á presença um do outro e o Sr. Perfil de chapéu preto à gangster entrava e passeava sem pressa pelo quarto explorando curioso um universo tão diferente do seu.

Houve um tempo em que minha janela se abria para...

... uma cidade cinzenta.
Uma cidade cinzenta cheia de lugares escondidos e portas e janelas que nunca se abriam.
Lembro do prazer de ser criança atrás das grades da janela do primeiro andar, olhando a chuva molhar a rua e o asfalto explodir em cheiro e cascata na ladeira de paralelepípedos que gostava de imaginar como sendo minha piscina particular.
Carros se tornariam barcos e correriam ladeira a baixo como eu, refrescada pela água da chuva, que só mais tarde pude provar.

Houve um tempo em que minha janela se abria para a varanda de uma casa de campo.
Lembro da chuva desafiando os céus, do cheiro da terra e dos estampidos fortes dos trovões, que já não me assustam mais.
O cheiro da chuva no ar. O cheiro do bafo quente, da humidade. O calor colado no corpo até sufoca-lo. O corpo suando, ansiando por chuva.
Lembro do dia em que tomei chuva sem que qualquer um me impedisse.
Lavei a alma na chuva que caíra tantos anos sem que eu pudesse me libertar das grades e correr solta com ela

Houve um tempo em que a minha janela se abria para...

...para a rotunda principal de Loures, ou para a paragem de autocarro da Buraca, ou para a casa da D. Ana em Almeirim. Espaços com tempos diferentes tatuaram a minha forma de ser fruto de causas, casualidades, consequências e acasos cheios de um blá blá blá meio cinzentóarrosado e que não me vou dar ao trabalho de te contar.

Após anos e anos das mais variadas vivências concluo que, no geral, as pessoas gostam de ouvir outras a arrotarem tragédias. E a idade...oh...a idade, as rugas e a pele engelhada já não me permitem aguentar cochichos e olhares invasivos.
Não quero que tenham pena de mim, nem quero que olhem para mim como aquela última notícia que sentimos, quase como uma necessidade, de contar ao amigo.
Não sou nenhum brinquedo acabado de ser rotulado como "novo" e que todos olham, compram e falam sobre.
A novidade rapidamente deixa de o ser e o que está fora de prazo azeda. Por isso, o que quer que seja que mais tarde vás contar, pensa antes de o fazeres. No segundo aseguir podes estar a dizer a maior das loucuras.

Se me quiseres ouvir, falo-te do meu período rosa. Não mais do cinzento...

Houve um tempo em que a minha janela se abria para…

… a copa de uma árvore, num terceiro andar, e podia ver as cabeças das pessoas cada uma na sua vida, os carros a passar, uma pastelaria no prédio em frente sempre num corrupio de gente a entrar e sair, sempre com croissants de chocolate especialidade, que se derrete nos cantos da boca.

quando cresci, subi para o sétimo andar, e quando comecei a estudar, para o décimo terceiro andar. comecei a trabalhar no vigésimo sétimo andar, casei-me no quinquagésimo sexto andar, consegui vista para o mar no andar duzentos e trinta e três… cada andar mais acima mais baixo que o anterior, como se a selecção natural nos estivesse a compactar verticalmente, para acomodar mais e mais gente em altura.

com o tempo, deixámos de fazer a viagem para ir à rua, ruidosa e onde mal já se consegue respirar, e que mal conseguimos ver lá em baixo, pela minha janela. quando queremos passear, vamos para um dos andares-jardim, caminhar por entre as árvores importadas, lagos feng-shui e pássaros a chilrear, com as nuvens brancas almofadadas mesmo ao lado no meio do azul, num silêncio relaxante e calmo.

a única coisa de que sinto mesmo falta, é de ter o chocolate daqueles croissants nos beiços…

Quando ninguém diria que dois peixes saíriam do aquário. Puro engano! Madalena e Francisco apesar de emocionalidade instável e complicada típico do signo de peixes deram à luz algures no mês de Fevereiro um aquariano bem terra a terra. Signo de Ar, tem uma grande paixão: mergulhar. É dentro de água que foge dos problemas do exterior e descobre um novo mundo azul que se reflecte na cor dos seus olhos. É nesse lugar onde sente bem e onde ninguém reprime os seus movimentos. Afinal também tinha um sonho secreto.

The mascot