Rafael e a Viagem sem Fim

Chamo-me Rafael, tenho 27 anos, e sempre adorei viajar de comboio. Quando era miúdo, lembro-me de ser acordado às 6 da manhã pelos meus pais, no meio da bruma matinal, para uma viagem de 4 horas e ligações até ao nosso destino de Verão.

Anos depois, fiz viagens semanais para o norte profundo, para um namoro semanal como o dos pássaros. Passa-se muita coisa num comboio em movimento, não é só o mundo que corre lá fora.

Um dia, ao abrir a janela de manhã, pensei: estou irremediavelmente deprimido. Era bom que assim não fosse, e até conseguia sorrir com prazer, mas não estava a dar. Fui para a Estação Oriente, pedi um bilhete para o próximo comboio a passar. Perguntaram-me o destino, tentando ajudar, mas sabia que não queria que me dessem a mão. “O próximo, e para longe.”

Apanhei-o por pouco, o relógio a tiquetaquear, tive de correr na plataforma. Era um comboio regional à antiga, e o suor escorria-me pela cara quando me sente, com o calor da corrida e da carruagem de metal.

Não queria pouca, mas muita terra, o corpo pedia-me como louco que me tornasse anónimo no meio de Vítores, Gilbertos, Alices e tantos outros ao meu lado.

Quando a viagem chegou ao fim, depois de quarenta e sete paragens, no interior do país, decidi prolongar a minha estadia no comboio, e entrei noutro para outro destino, para uma viagem interminável. Só com uma mochila às costas, passei por todo o lado, até os nomes dos sítios perderem significado e a barba se avolumar no rosto. Era uma espécie de maldição, senti, mas tinha preguiça de deixar aquela liberdade.

Quando passei a fronteira da Croácia, e andava pelos corredores das carruagens à procura de onde me sentar, vi-a a vir em direcção a mim. Também com uma mochila às costas e um brilho triste nos olhos profundos, morena e com ar estrangeiro. Mantive o passo, mas por dentro já estava a correr.

Se tivesse tido tempo de pensar, teria pensado que ela podia ser a paixão da minha vida. Mas não tive. Encontrei maneira de meter conversa, atabalhoadamente. Chamava-se Snjezana, que em português significa Floco de Neve, e na conversa que conseguimos ter senti que os dois sorrisos de viajante se iluminaram, com uma tontura de prazer confundida com o balançar da carruagem.

Horas depois, na carruagem-cama, quando nos beijámos e tocámos pela primeira vez, e depois do silêncio em que não se pode falar para não estragar, fizemos o nosso contrato vitalício:

Continuar sempre aquela viagem sem rumo. Mas agora, a dois.

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