diz-se nos fóruns da in-ter-net

muitas coisas que são mentira. mas também há por lá, nos fóruns da in-ter-net, muitas verdades incómodas, e muita sabedoria disfarçada.

agora há muitos anos que não vou aos fóruns da in-ter-net, mas antigamente ia lá muito. foi lá que te encontrei, que te conheci e que te namorei, foi lá que casámos, numa cerimónia de palavras trocadas em mensagens e respostas, e apadrinhada por todos os que nos quiseram ler ou interferir com inveja mal disfarçada.

foi lá que vivemos o nosso romance intenso e apaixonado, nos fóruns da in-ter-net. como se fosse o nosso pequeno filme, a nossa curta metragem a muitas cores, a namorar palavras entre uma mensagem e outra, num sexo animal que os corpos nunca poderão reproduzir de igual forma.

depois desligaram a in-ter-net, e nunca mais te reencontrei.

Sete cincos

Cinco dias me enfrentaram
Cinco palavras me escaparam
Cinco dedos me agarraram
Cinco minutos me fugiram
Cinco abraços me deram
Cinco pétalas de uma flor
Cinco crianças me sorriram

A paixão

Estava apaixonado. Assim, sem mais nem menos. O amor tinha-o agarrado pelos colarinhos, sem pedir permissão, e fazia dele o que queria.
Se ao menos as circunstâncias fossem menos complicadas. Mas não. Se tinha de lutar, que assim fosse. Se tinha de fugir, pois bem, venha de lá essa fuga.
Ao pé do quiosque cinzento, por debaixo de uma árvore decrépita, por debaixo de um céu opressor, ele esperava. Ela tinha de vir. Simplesmente tinha.
Enquanto esperava, pensava nas noites excitantes e assustadoras que tinham passado juntos, num grau de intimidade destilado à exaustão, duas almas nuas e sem segredos que se orbitavam incessantemente.
Ela tinha de vir. Um táxi parou e uma mulher apeou-se. Não era ela.
Voltou a olhar para o relógio. Onde poderia estar?
Uma flor escarlate de sangue surgiu no centro da sua testa e um buraco gémeo materializou-se na nuca. Caiu no passeio frio, sem perceber o que aconteceu. Ela nunca viria.
Mas o marido tinha acabado de chegar e guardava a arma fumegante no bolso do sobretudo, enquanto os gritos nasciam um pouco por todo o lado.

Aluguei o cérebro

A crise tem destas coisas. Para fazer face às inúmeras despesas do dia-a-dia, sustentar os vícios e as colecções de pastilhas, em que pontifica um pacote de 5, novilho em folha, de pastilhas Gorila verdes dos anos 80. Sim, aquelas que se punham todas de uma só vez na boca ao mesmo tempo até deixar de conseguir falar, com uma expressão alegre e atrapalhada na boca. Vale quase 4000€, há muitos que mas querem abocanhar, malandros!

Mas dizia eu antes de me distrair. Agora acontece muito distrair-me. Às vezes parece que sei porque é, mas quando estou quase a pôr isso por palavras, esquece-me o que ia pensar. Não é que isto de me distrair aconteça com muita frequência. Se pensar bem nisso, a última vez já foi há praí um mês e espinhos. Ainda me recordo assim mais ou menos e tudo.

Porque dizia eu antes de me distrair, e isto sim é do que queria falar. Estou aqui a bebericar um rosê enquanto escrevo para ver se me concentro. Estar a escrever com um copo na mão é curiosamente mais fácil do que escrever desarmado. Onde é que eu ia?

Ah. Estava a falar do que ia dizer antes de me confundir com os vícios e excepções. Aluguei o meu cérebro. É. Vi nos fóruns da internet, estavam a pedir voluntários, e para sustentar os meus vícios e as minhas colecções de pastilhas, decidi alugar o meu cérebro. Li uma vez numa revista que só usamos 10% do nosso cérebro, por isso decidi alugar os outros 90% para fazer investigação médica e descoberta de vida fora do sistema solar. Parece que há muita gente que anda assim, com a cabeça na lua e até mais longe.

Posso dizer que já ando há uns 8 meses nisto, e que não há risco nenhum. Tenho tido aí outros problemas, enfim o normal nestes tempos modernos, mas não tem nada a ver com isso do cérebro. É mesmo verdade o que dizem. Só usamos 10%.

O que acontece quando deixamos de fazer planos?

Exercício Final
Escrever Escrever, 13/08/09

Mais célebre que o Cristiano Ronaldo, para o qual já não havia paciência – coitado, a culpa era das revistas cor-de-rosa, dos canais de televisão, das marcas e marketeers – mas mais célebre e respeitado que ele pelo menos ali no bairro, vivia o Tartamundo que tinha sempre a barba por fazer e as pestanas reviradas.
Tartamundo era afixador de cartazes na Cidade das Letras Esquecidas e tinha sempre planos: planos para amanhã, planos para depois de amanhã, planos para as férias, planos de ontem para um dia destes, entre muitos outros planos.
Num dia em que chegou mais uma remessa de cartazes para afixar pelas ruas da cidade, Tartamundo leu num cartaz acabadinho de desenrolar:
“A vida é o que acontece enquanto estamos ocupados a fazer planos”
A frase, que vinha assinada por Thomas La Mance, ficou-lhe ali a ecoar no espírito durante uns tempos. Tartamundo não sabia quem era aquele senhor, mas achou que bem visto, bem visto, ele tinha razão!
Tartamundo que vivia com mãe quase cega de uma vista e infectada de preguiça poética, partiu rumo ao Oriente sem esforço (e sem grandes planos) para sentir a liberdade do anonimato e apreciar em toda a sua plenitude a tão anunciada chuva de pirilampos.

Durante a viagem, num comboio em movimento lento conheceu a Nely, a doce Nely. Tinha um cheiro adocicado viciante mas não enjoativo de menina feita de pão de leite.
Era uma mulher dos seus 50 anos que havia nascido com aquele cheiro colado na pele que para ela era um cheiro maldito que tantas amarguras de amor lhe tinha trazido.
Sentada muito direita, tinha uma timidez compensada com a secura no comportamento que deixava Tartamundo com vontade de lhe dizer:
- Não fales, não estragues!
Ele que ia sentado no banco de frente para ela, pensava:
- Podia ser a Paixão da minha vida!
Esse desejo muito reprimido veio á tona... Esse desejo de ter uma mulher apaixonada por si e para si.
Estava farto de amores rápidos que não crescem como tinha sido com a Madalena, com a Guarda Freixo e com todas as outras.
(...)
Um dia destes acabo o exercício!

Uma Analogia Interessante




Leonor e a timidez

Quando ninguém diria que Leonor era tímida, a verdade é que a timidez fazia parte da sua vida de forma constante e quase epidémica.
Sem saber muito bem porquê, era-lhe difícil conseguir falar habilmente com os outros e deixa-los entrar na sua esfera de intimidade nos momentos certos.
Quase sempre cedo demais, ou tarde demais, estas incursões ocorriam amiúde e estavam quase sempre condenadas ao desastre.

A sua timidez era compensada com alguma secura no comportamento habitual, o que era confundido frequentemente com arrogância. Tragicamente, esta dança de mal-entendidos, de mensagens mal enviadas e mal recebidas resultava num turbilhão emocional a que era difícil fazer frente.
Assim, embora abençoada com uma beleza clássica, Leonor continuava sozinha, interrogando-se sobre o que falhava nos seus relacionamentos.

Após uma infância passada no extremo Oriente, Leonor, de 21 anos, vivia agora em Lisboa, com o seu irmão mais velho, com quem partilhava uma casa moderna e espaçosa.
A dança era a sua grande paixão na vida, talvez instigada pela carreira brilhante dos seus pais, um par de dançarinos reconhecidos internacionalmente como sumidades da valsa.

Um dia, foi a dança que lhe mudou a vida. Parte da sua timidez foi finalmente conquistada quando Leonor decidiu entrar para uma escola de dança. E foi lá que conheceu David.
David, que conseguia ser ainda mais tímido que Leonor, afinal também tinha um sonho secreto.

As sestas do Unicórnio e do Coelho no Castelo Abandonado

História Infantil para alguém acabar

Era uma vez um unicórnio e um coelho muito amigos desde o tempo em que andavam no jardim infantil.
Tinha sido uma amizade á primeira vista e em comum partilhavam a tristeza de serem obrigados a dormir a sesta, todos os dias das das 14h00 ás 15h30.
Esta insatisfação com a sesta tinha porém cimentado a sua amizade, porque ficavam acordados nas caminhas de campanha a segredar baixinho as histórias do Castelo Abandonado.
Naquela noite, o Castelo Abandonado estava iluminado e ia ser palco de uma reunião de seres fantásticos do mundo inteiro: a Bruxa do Caldeirão, o Monstro dos Sapatos, a Àrvore Falante, a Princesa Enfeitiçante entre muitos, muitos outros.
O Monstro dos Sapatos foi o primeiro achegar e como era o maior de todos ficou responsável por colocar a grande escada nas muralhas do castelo por onde todos os companheiros iriam subir para entrar.
Já passava das 10 horas da noite e estavam sentados á mesa onde tinham jantado magnificamente porque a Bruxa do Caldeirão, responsável pelo jantar, havia cozinhado uma sopa de estrelas e relâmpagos crocantes que a todos tinha deliciado.
A Árvore Falante aproveitou as dez badaladas e meia vindas do Relógio Morcego, tossicou e disse:
- Amigos do mundo fantástico, estamos aqui reunidos com o importante propósito de decidirmos onde vamos passar o nosso Natal este ano. Alguém quer fazer uma sugestão?
...

Luísa Carreira perdeu o emprego

Por Cheila, Jota & Mary
Luisa Carreira tinha perdido a agenda e as chaves de casa na semana passada, há dois meses tinha sido o telemóvel... realmente andava de cabeça no ar.
Agora, o mais improvável tinha acontecido e a questão ecoava irónica dentro de si: Como é que alguém de apelido Carreira, perdia o emprego?! Como?!! Não se conseguia lembrar onde o tinha deixado pela última vez....

Procurou nos bolsos, sem sucesso. Na mala, sempre repleta, quase se perdia a si própria. Tentou o telemóvel, ainda quase sem contactos. As vozes familiares dos amigos franziam as sobrancelhas, “Deves estar a brincar, Luísa. Só tu!”, e entre risadas acabavam por terminar as conversas. “E agora?”, perguntou-se. Estava sentada no carro, oito da manhã, as pessoas iam saindo apressadas em seu redor. Completamente desperta, e sem saber para onde ir. Bolas. E agora?

E agora? Como é que faço para fazer crescer os bigodes do gato? - pensava Luísa com todos os botões que tinha naquela altura. Foi a correr para casa e assim que chegou agarrou num lenço branco que se encontrava na cómoda da cozinha e atou-o na perna esquerda da cadeira que ali se encontrava. Dirigiu-se à aparelhagem e colocou a rodar a faixa nº3. Shriiink!! Abadu abadu!! Vik Vik Raidu!! Palavras estranhas ecoavam ao mesmo tempo que fazia uma dança completamente acabada de improvisar.

Tinha lido um livro de mézinhas indianas e esta era a sugerida como infalível para se encontrar coisas que tinham desaparecido. Dez minutos depois estava tonta, caiu no chão e fechou os olhos até a tontura passar. Recuperada, após alguns minutos, levantou-se, tirou o elástico que prendia o rabo de cavalo e por momentos achou que estava a ver mal.... Freud, que explica sempre tantas coisas, conversava animadamente com Woody Allen sentados á mesa na sua cozinha. Dissertavam sobre onde estaria o emprego que a Luísa tinha perdido. Mais surreal era impossível então Luísa fechou os olhos de novo e voltou a abri-los, mas eles continuavam ali e o Woody olhou para ela e num português aespanholado disse:
- O teu emprego está...

… na gaveta da sala, onde o deixaste antes d’ontem.
Há alturas em que não vale a pena questionar nada, e com um encolher de ombros mais imaginado que real, virou costas e foi para a sala. Abriu a gaveta, e percebeu que o gato Woody tinha razão. Estava lá o emprego perdido! Não sabia o que estaria a fazer ali, mas era certo ter sido ele a escondê-lo. Certamente por vingança por lhe ter cortado os bigodes. Mas ele mereceu. Devia ter adivinhado que comprar um gato em Salamanca não seria boa ideia, malandro.

Ali estava ele...o emprego...que não era mais nem menos a pílula do dia seguinte. Esses acasos nocturnos...ou diurnos...enfim...casos e acasos remetem directamente para uma responsabilidade que Luísa Carreira desconhecia. Por isso é que se dedicou sempre à dança...actividade que dispensa qualquer tipo de material didático se não o próprio corpo.

Eu andava à procura de um sítio sossegado para morrer

Eu andava à procura de um sítio sossegado para morrer e, desta forma fui à procura de um emprego.
Três meses num, quatro meses num outro. Aquilo dos hotéis era uma treta.Com todos os meus irmãos ligados à restauração e eu perdida entre hóspedes picuinhas e chefes surreais resolvi partir para Itália depois de ler aquele poema rasgado ao qual acrescentei as palavras que tinham desaparecido.
Quando lá cheguei estava um caos, trabalhei em restaurantes, fazendo bolonhesas e pizzas até que esparguete me começou a crescer no cabelo. Aí parei. Senti que não podia mais.
Descobri uma gruta, por entre uma cascata, onde apenas crescem lindos endemismos. Nesta parca luz, resolvi tirar a revista que jazia na minha mochila por entre o farnel delicioso que lá estava, Tinha uma fotografia de uma mulher em uniforme com uma postura confiante. Na folha do lado tinha um anúncio de gelados e descobri que tinha de me juntar aos meus irmãos. Eu ia trabalhar na restauração, com gelados. Assim, aproveitei e aprendi os tradicionais gelados italianos.
Quando voltei, fui para Coimbra e vendi as duas moedas que de nada me valiam. Apenas gostava das palmeiras estampadas no verso e do teatro em relevo na frente. Um desvairado de um coleccionador, deu o suficiente para começar a minha gelataria em Coimbra e, assim descobri a doçura da vida.

Imaginar uma personagem que perdeu o emprego…

Sebastião Ferreira nasceu em Linhares de Cima, uma aldeia da Beira Baixa, no seio de uma família abastada e conservadora.

O seu pai, Hipólito, apesar de se dar a ares de superioridade moral, era em segredo um viciado em sessões de sexo com prostitutas, apimentado com aparelhos improvisados de sadomasoquismo. Quanto mais velhas fossem as senhoras, melhor.

Toda a gente da aldeia sabia desta obsessão, e embora não fosse claro quantas senhoras viviam confortavelmente à custa do pai do Sebastião, dizem as más-línguas que seriam muitas. Margarida, a mãe de Sebastião, parecia ser a única pessoa da aldeia que insistia em não ver o que se passava. Mulher carinhosa, mas sufocante, Margarida era o centro de incontáveis piadas de mau gosto, gozada abertamente e em segredo, um pouco por toda a gente, tal como Sebastião. “Filho do papa-putas”, era como lhe chamavam a maioria das crianças da aldeia.

Foi neste ambiente que Sebastião cresceu, rodeado por hipocrisia e obsessões mal escondidas, e tal como a sua mãe, desenvolveu uma capacidade espantosa de ignorar o óbvio e de ser bastante selectivo sobre a percepção da realidade que o rodeava. Como seria de esperar, apesar de ser um mecanismo de defesa bastante eficaz, esta deturpação da realidade acabava por semear a confusão emocional a um nível quase absoluto.

Sebastião cresceu a odiar o pai, embora não o soubesse conscientemente, e não era apenas pelo sofrimento que ele lhe causava indirectamente ao querer copular com qualquer prostituta com mais de 60 anos. Era também porque era um pai austero e controlador. Hipólito era uma figura imponente, sempre pronta a esmagar qualquer centelha de criatividade, sempre pronto a destruir qualquer relâmpago frágil de alegria. Sebastião precisava de ter constantemente um semblante carregado, um sobrolho franzido e compenetrado, pensamentos centrados na eficácia e no cumprimento de objectivos. O seu pai não queria um filho, queria um robot.

Quando tinha 18 anos, Sebastião mudou-se para Lisboa, para estudar Direito, tal como esperado pelo seu pai e pelo resto da corja a que tinha a infelicidade de chamar família. Secretamente, Sebastião ansiava ser pintor, mas esse sonho foi prontamente obliterado pelo seu pai, após uma menção ingénua numa conversa casual. Desde aí, Sebastião aprendeu que nunca deve discutir sonhos e ambições com o seu pai, e na prática, deve falar com ele apenas se estritamente necessário.

Assim, ano após ano, Sebastião foi cumprindo os seus objectivos até se formar em Direito, tendo arranjado emprego pouco tempo depois, numa respeitável firma de advogados.

O trabalho é a fundação da sua vida, não porque o considere extremamente importante ou apaixonante, mas simplesmente porque não há outra coisa. Actualmente, Sebastião vive sozinho num apartamento moderno e espaçoso, que lhe parece sempre demasiado grande e vazio. Dia após dia, evita pensar em todo esse espaço vazio, porque por mais que se esforce, não consegue perceber o que lá falta. Isso frustra-o e desespera-o a um nível demasiado intenso para ser irrelevante. E assim, se evitar pensar nisso, a sua realidade continua agradavelmente editada de acordo com o que lhe parece suportável.

Ironicamente, depois de passar a maior parte da sua vida a tentar distanciar-se do comportamento omnipresente do seu pai, Sebastião acaba por reproduzi-lo quase perfeitamente. A sua triste realidade também é contaminada por uma obsessão sexual, não por prostitutas idosas, mas por rapazes pré-adolescentes. Infelizmente para Sebastião, não há truque ou mecanismo de defesa que consiga editar este problema e a sua obsessão secreta é motivo de enorme vergonha e desespero.

Não sendo uma pessoa totalmente estúpida, Sebastião já passou horas incontáveis da sua vida a tentar perceber o problema, a tentar decidir o que fazer, analisando meticulosamente todos os pontos de vista, e já gastou rios de dinheiro em psicoterapia. Embora não tenha resultado completamente em termos práticos, pelo menos ajudou-o parcialmente a controlar os seus desejos e a ficar sempre do lado certo da lei.

Hoje, Sebastião perdeu o emprego. Alguém descobriu o seu pequeno problema e convidou-o a sair da firma de advogados onde sempre trabalhou. Aparentemente, é completamente irrelevante que nunca tenha feito nada de mal e nunca se tenha metido em problemas. No fundo, Sebastião já receava que qualquer coisa deste género acontecesse um dia. Que a sua frágil capa de respeitabilidade se desmoronasse e a sua ferida purulenta ficasse à mostra.

Segundo o seu chefe, a firma não precisa desse tipo de publicidade, e se não sair a bem, sai a mal.
Decidiu sair a bem.

Há horas que está na esplanada do café a pensar sobre o que fazer. Já lhe passaram montes de coisas pela cabeça, incluindo entrar pela firma adentro aos tiros de caçadeira, e a gritar “E que tal esta publicidade, chefe?” KABLAM!!! Mas é claro que não vai fazer isso.

A frágil fundação da sua vida acabou de explodir, como uma bola de sabão que passou o prazo de validade e na prática, está a aperceber-se que nem se importa assim tanto com isso.

Talvez agora possa vender a casa, comprar telas e pincéis, e dedicar-se à pintura.

O Avô e o Chá de Menta

Estou sentada na varanda do meu terceiro andar emprestado a fazer o que há muito não fazia: estar simplesmente sentada. Sem música, a fazer nada, contemplo a paisagem, simplesmente contemplo.
Oiço os sons da rua: conversa entre vizinhos sobre o preço do pão, estores a fechar, o ladrar de uma matilha no fundo da rua, a porta de um carro a abrir, um avião que sobrevoa a cidade...

- Um dia vais sentir necessidade de o fazer, Isabella! - dizia o meu avô.

Após a morte dele e à medida que fui crescendo, cada vez mais se tornaram claras as nossas conversas à hora do almoço.
- Isabella, sabes porque é que a tua mãe bebe tanto chá de menta?
- Não, avô.
- Porque ajuda muito na digestão. E achas que ela gosta?
- Não sei. Gosta avô?
- Não, pequena, não gosta. Ela bebe porque faz-lhe bem, mesmo não gostando muito da infusão. Isabella, o que te pretendo dizer é que gostava que quando fosses grande não fizesses aquilo que não gostas, mesmo que traga inúmeros benefícios. Sempre que possível, junta o chocolate ao prazer de comer.
- Eu gosto de chocolate!

À medida que crescemos é que damos valor à experiência dos que sabem. Depois, juntamos essas experiências às nossas e assim se criam novos comportamentos.
Foram precisos vários anos para perceber que o que me sacia afinal, não era tanto um chocolate, mas muito mais uma fatia de um bolo de bolacha.