A ponte

O sol aquecia bem forte e, a o seu calor alimentava a minha pele enquanto que a sua forte luz, encadeva o meu olhar. Para desviar o meu foco, olhei para o céu que não conseguia ver, pois a força do progresso tinha feito uma ponte por cima de mim, tão forte que era tão resistente ao vento quanto os castelos que perduram até aos dias de hoje. A ponte chorava, pois, para além do betão de que é feita, a mágoa dos imigrantes que a fizeram está presente em cada pedaço da ponte. Mágoa por estarem afastados da família, mágoa por enviarem uma caixa com um presente quando, o que queriam realmente era essa pessoa próxima dos seus corações.

Mesmo assim as lágrimas soltavam-se na minha direcção, sozinhas, separadas umas das outras, cada uma a seu tempo, bem definidas e de proveniências diferentes, percorrendo um longo caminho. Eu olhava deliciado vendo-as libertarem-se navegando com o vento.

Depois parti, era hora de voltar ao meu caminho. Quando me afastei, voltei a trazer o meu olhar para a ponte. Porém as suas lágrimas já não se soltavam na minha direcção. De facto poderia dizer que elas já não existiam, simplesmente por não as ver. Apenas vi uma jovem a desfazer-se no horizonte com um vestido encarnado. Porém, acredito que as lágrimas, ainda se continuem a soltar, essas que sustentam a ponte tanto quanto as vigas e o betão querem-se libertar para depois se voltarem a reunir.

A caixa do laço encarnado (Desafio 1)


No fim do cais de madeira, sob a luz moribunda de um sol quase posto, Beatriz agarrava nervosamente a caixa metálica junto ao peito e olhava o seu reflexo na água do lago.

A caixa era como tantas outras, comprada num bazar, durante uma viagem à Turquia, há uma eternidade atrás. Tinha sido uma prenda de Hélder, o seu marido, e a única característica que a distinguia era o laço encarnado em relevo que existia na tampa.

Para Beatriz, a caixa assumia um significado especial porque era onde guardava fotos e outros pequenos tesouros que para qualquer outra pessoa não teriam valor. Eram essencialmente fotos despretensiosas e simples, testemunhas de uma vida repleta de felicidade, amor e paixão. Uma vida que tinha acabado.

A primeira vez que Beatriz viu Hélder foi num palco. Um palco de karaoke de um bar em Istambul. Hélder estava ligeiramente alcoolizado e a fazer uma imitação atroz e hilariante de Queen. Ria enquanto cantava, cantava enquanto ria e conseguia divertir toda a gente que assistia.
Talvez por se encontrar mal-humorada nesse dia, Beatriz achou, à primeira vista, que Hélder era apenas mais um bêbado idiota. O divertimento de toda a situação estava a passar-lhe ao lado, algo que infelizmente acontecia com alguma frequência.
Apesar de não saber bem porquê, Beatriz tinha a consciência de se estar a tornar uma pessoa amarga com o passar do tempo.
Assim, foi com alguma irritação que esbarrou mais tarde com o tal bêbado, ao pé das casas de banho. O bêbado chamava-se Hélder.

Beatriz nunca soube se foi a partir daí que se apaixonou, ou a partir do momento em que o viu em cima do palco do karaoke. Mas isso nunca foi assim tão importante.
Passados 2 anos de namoro, casaram e apesar de não serem abençoados com filhos, orbitavam incessantemente em torno um do outro e as suas mentes estavam repletas de pensamentos lindos sobre como fazer o outro feliz.
Sim, ambos tinham consciência de quão piroso isso era. Mas não serão todos os amores pelo menos um bocadinho pirosos?

Hélder, que era historiador, acabava por viajar bastante, especialmente para o Médio Oriente. E Beatriz, que adorava viajar e estava a terminar o doutoramento em Biologia Marinha, aproveitava todas as oportunidades para ir com ele. A felicidade parecia eterna e o mundo estava cheio de possibilidades.

Até que Hélder a deixou. Deixou-a, e dilacerou-lhe o coração. A velocidade tinha sido um factor crítico, disseram os polícias. O mau tempo, a estrada degradada, a velocidade, mil e uma coisas que provocaram o acidente.
Chamaram-lhe acidente. Lamentavam muito. Se precisasse de alguma coisa, era só dizer. Disto tudo, Beatriz só ouviu uma parte.

A sua vida ruía como um castelo de cartas mal concebido e todos os abraços de conforto lhe pareciam frios, todas as palavras eram vazias. Sentia-se um animal encurralado, que olhava para todos os lados, desesperadamente à procura de um buraco na realidade por onde pudesse fugir. Mas o mundo não é assim tão misericordioso.

Agora, no fim do cais, 3 anos depois, enquanto sentia o vento de Outono a brincar com os cabelos longos, fechou os olhos e deixou as lágrimas correrem livremente pela face. Caíram em grandes gotas em cima das tábuas e rapidamente foram absorvidas pela madeira ressequida.

Beatriz interrogava-se se estaria a perder o juízo. Quando é que tinha começado a ouvir as palavras de Hélder, que pareciam sair da caixa directamente para a sua mente, sem mais ninguém ouvir? Hélder, o amor da sua vida. Ele falava-lhe através da caixa, ela tinha a certeza. Que importa que mais ninguém ouvisse?

Ela sabia que era verdade porque eram coisas que ele costumava dizer. Quando acariciava uma das fotos e fitava intensamente o olhar do seu marido podia quase jurar que ele estava lá, vivo numa outra espécie de realidade. E tinha arranjado maneira de falar com ela, porque ela era especial.
Uma parte da sua mente, bem lá no fundo, uma parte racional que não era afectada pela mágoa que lhe asfixiava o coração todos os dias sabia que isto não era verdade. Mas de cada vez que esse pessimista cantinho da sua consciência levantava objecções era prontamente silenciado. Esse cantinho não tinha lugar na nova realidade de Beatriz.

Ultimamente, Hélder tinha começado a pedir-lhe coisas difíceis. Coisas que faziam sentido, mas que seriam difíceis de fazer. Algo que pediria muita força de vontade, mas que Beatriz sabia que iria colocar a sua vida em ordem de novo. Sim, a felicidade ainda estava ao seu alcance. Hélder estava à espera dela.

Beatriz largou a caixa metálica com todos os seus tesouros lá dentro. A caixa caiu dentro de água com um sonoro “splash” que lhe salpicou os pés nus com água fria. Alguns momentos depois, Beatriz seguiu a caixa e caiu para dentro do lago. Enquanto se afundava na água gélida, olhou para a superfície e sorriu. Tudo iria ficar bem.

setembro por dentro

tirei-te uma fotografia ao rosto da minha janela, quando caminhavas pela rua na minha direcção, sem me veres. sem o saberes, sem eu o perceber também, senti que eras mais que um retrato a ampliar, a preto e branco, numa moldura grande que viria a pendurar numa parede.

estávamos em setembro, aquele mês em que o tempo ainda nos deixa passar noites na praia a conversar com a luz da marginal por trás, à procura de um beijo num intervalo da conversa, em que se começam a escrever nas folhas de papel dos diários histórias que começam com “era uma vez” que duram anos, histórias de amor que começam com a paixão dos estores para baixo em quartos quentes da respiração ofegante de corpos aos pares, e terminam… ou não, quando o nosso destino o quiser.

quis conhecer-te, imaginei enquanto apertava repetidamente o botão os teus lábios macios e um abraço apertado e quente, num instante vi passar-me pelos olhos -  como se à beira da morte - toda uma vida alternativa, e nasceu-me um sorriso nos lábios. quis-te.

estranha sensação esta. pouco depois deixei a janela, e com memória de peixe, esqueci o que tinha pensado e a sensação de alegria que me deixaste. só ficaste tu. num rolo a revelar dias depois, e onde o teu sorriso e o verde invisível dos teus olhos me faria perguntar em voz alta porque não correra para falar contigo.

nunca ninguém pergunta pelo três de paus

Vivo num castelo de cartas tão sólido que resiste à força do vento. São cartas manuscritas, cartas enviadas e não enviadas, cartas recebidas e cartas que quis ter recebido.

O meu castelo é rodeado por um fosso cheio de água, cheio de crocodilos e suas lágrimas, e tem duas portas, ambas cartas de jogar. Uma, a da direita, é um preto três de paus, uma porta de que prefiro não falar. A segunda, a da esquerda, é um encarnado Ás de copas, e só se vai abrir no mais especial dos dias, e para a mais especial das pessoas. Por mais mais forte que empurrasses, por mais rápido que corresses, nem que passasses a velocidade do som a conseguirias derrubar,

se não fores tu a pessoa certa.

Às vezes fico a olhar para a carta encarnada com o Ás de copas, com mágoa suspirante de não a ver abrir-se devagarinho, com o mistério de não saber quem a poderá atravessar.

Vivo num castelo de cartas, na minha caixa de cartas, escritas ou recebidas ou jogadas por mim ou contra mim, e quero ser eu capaz de abrir a porta, sair lá para fora, e deixar tudo isto para trás de uma vez por todas.