Imaginar uma personagem que perdeu o emprego…

Sebastião Ferreira nasceu em Linhares de Cima, uma aldeia da Beira Baixa, no seio de uma família abastada e conservadora.

O seu pai, Hipólito, apesar de se dar a ares de superioridade moral, era em segredo um viciado em sessões de sexo com prostitutas, apimentado com aparelhos improvisados de sadomasoquismo. Quanto mais velhas fossem as senhoras, melhor.

Toda a gente da aldeia sabia desta obsessão, e embora não fosse claro quantas senhoras viviam confortavelmente à custa do pai do Sebastião, dizem as más-línguas que seriam muitas. Margarida, a mãe de Sebastião, parecia ser a única pessoa da aldeia que insistia em não ver o que se passava. Mulher carinhosa, mas sufocante, Margarida era o centro de incontáveis piadas de mau gosto, gozada abertamente e em segredo, um pouco por toda a gente, tal como Sebastião. “Filho do papa-putas”, era como lhe chamavam a maioria das crianças da aldeia.

Foi neste ambiente que Sebastião cresceu, rodeado por hipocrisia e obsessões mal escondidas, e tal como a sua mãe, desenvolveu uma capacidade espantosa de ignorar o óbvio e de ser bastante selectivo sobre a percepção da realidade que o rodeava. Como seria de esperar, apesar de ser um mecanismo de defesa bastante eficaz, esta deturpação da realidade acabava por semear a confusão emocional a um nível quase absoluto.

Sebastião cresceu a odiar o pai, embora não o soubesse conscientemente, e não era apenas pelo sofrimento que ele lhe causava indirectamente ao querer copular com qualquer prostituta com mais de 60 anos. Era também porque era um pai austero e controlador. Hipólito era uma figura imponente, sempre pronta a esmagar qualquer centelha de criatividade, sempre pronto a destruir qualquer relâmpago frágil de alegria. Sebastião precisava de ter constantemente um semblante carregado, um sobrolho franzido e compenetrado, pensamentos centrados na eficácia e no cumprimento de objectivos. O seu pai não queria um filho, queria um robot.

Quando tinha 18 anos, Sebastião mudou-se para Lisboa, para estudar Direito, tal como esperado pelo seu pai e pelo resto da corja a que tinha a infelicidade de chamar família. Secretamente, Sebastião ansiava ser pintor, mas esse sonho foi prontamente obliterado pelo seu pai, após uma menção ingénua numa conversa casual. Desde aí, Sebastião aprendeu que nunca deve discutir sonhos e ambições com o seu pai, e na prática, deve falar com ele apenas se estritamente necessário.

Assim, ano após ano, Sebastião foi cumprindo os seus objectivos até se formar em Direito, tendo arranjado emprego pouco tempo depois, numa respeitável firma de advogados.

O trabalho é a fundação da sua vida, não porque o considere extremamente importante ou apaixonante, mas simplesmente porque não há outra coisa. Actualmente, Sebastião vive sozinho num apartamento moderno e espaçoso, que lhe parece sempre demasiado grande e vazio. Dia após dia, evita pensar em todo esse espaço vazio, porque por mais que se esforce, não consegue perceber o que lá falta. Isso frustra-o e desespera-o a um nível demasiado intenso para ser irrelevante. E assim, se evitar pensar nisso, a sua realidade continua agradavelmente editada de acordo com o que lhe parece suportável.

Ironicamente, depois de passar a maior parte da sua vida a tentar distanciar-se do comportamento omnipresente do seu pai, Sebastião acaba por reproduzi-lo quase perfeitamente. A sua triste realidade também é contaminada por uma obsessão sexual, não por prostitutas idosas, mas por rapazes pré-adolescentes. Infelizmente para Sebastião, não há truque ou mecanismo de defesa que consiga editar este problema e a sua obsessão secreta é motivo de enorme vergonha e desespero.

Não sendo uma pessoa totalmente estúpida, Sebastião já passou horas incontáveis da sua vida a tentar perceber o problema, a tentar decidir o que fazer, analisando meticulosamente todos os pontos de vista, e já gastou rios de dinheiro em psicoterapia. Embora não tenha resultado completamente em termos práticos, pelo menos ajudou-o parcialmente a controlar os seus desejos e a ficar sempre do lado certo da lei.

Hoje, Sebastião perdeu o emprego. Alguém descobriu o seu pequeno problema e convidou-o a sair da firma de advogados onde sempre trabalhou. Aparentemente, é completamente irrelevante que nunca tenha feito nada de mal e nunca se tenha metido em problemas. No fundo, Sebastião já receava que qualquer coisa deste género acontecesse um dia. Que a sua frágil capa de respeitabilidade se desmoronasse e a sua ferida purulenta ficasse à mostra.

Segundo o seu chefe, a firma não precisa desse tipo de publicidade, e se não sair a bem, sai a mal.
Decidiu sair a bem.

Há horas que está na esplanada do café a pensar sobre o que fazer. Já lhe passaram montes de coisas pela cabeça, incluindo entrar pela firma adentro aos tiros de caçadeira, e a gritar “E que tal esta publicidade, chefe?” KABLAM!!! Mas é claro que não vai fazer isso.

A frágil fundação da sua vida acabou de explodir, como uma bola de sabão que passou o prazo de validade e na prática, está a aperceber-se que nem se importa assim tanto com isso.

Talvez agora possa vender a casa, comprar telas e pincéis, e dedicar-se à pintura.

1 comentários:

João Pedro "jota" Martins disse...

Genial. Muito bem escrito, Mr. Boris. Gostei sinceramente.

Enviar um comentário