O túnel

Aos 5 metros de profundidade, o computador de mergulho no seu pulso indicava que apenas faltava mais 1 minuto para terminar a paragem de segurança.

Na mão esquerda segurava o carreto de fio, que sustentava verticalmente a bóia de patamar, uma bóia laranja, de forma vagamente cilíndrica que indica às embarcações em movimento à superfície que existe um mergulhador por baixo que vai subir em breve.

Para Samuel Martins, esta era a parte mais aborrecida do mergulho. Esperar que os três minutos de segurança passassem. Na maioria das vezes, ficava apenas a olhar para o azul, ora para a esquerda, ora para baixo, ora para a direita, na esperança de ver algum cardume interessante que pudesse distraí-lo durante a espera, mas geralmente não tinha essa sorte. Hoje, parecia ser um desses dias.

Para ser sincero, Samuel estava aliviado por o mergulho ter terminado. Não se estava a sentir bem. Desde a passagem pelo túnel que algo lhe parecia errado.

Ah sim...o túnel. Tinha-o encontrado entre duas rochas de proporções faraónicas, numa área da baía onde não costumava ir habitualmente. Por alguma razão desconhecida da parte consciente da sua mente, nunca se tinha atrevido a explorar aquela zona.
Mas hoje, ignorando os seus instintos, tinha aberto uma excepção e após uns minutos iniciais sem grandes motivos de interesse, avistou o túnel.

A entrada era bastante grande, com cerca de 5 metros de largura, mas a sua altura não excedia 1 metro, 1 metro e meio.

A saída do túnel era bem visível, uma versão mais pequena da entrada, encolhida pela distância, pela qual entrava uma belíssima luz azul. Samuel apaixonou-se instantaneamente pela atmosfera no interior do túnel e pelos deslumbrantes tons de azul que a luz emprestava às paredes da rocha. A luminosidade exterior pregava partidas e parecia inventar novos espectáculos visuais com cada efeito de refracção provocado pela ondulação á superfície.

Samuel entrou no túnel, usando a sua lanterna para observar cada nicho, e cada reentrância. O túnel estava repleto de vida, repleto de criaturas que, apesar de já ter visto em grandes quantidades noutros locais, continuavam a fasciná-lo como se fosse a primeira vez que os via. O mergulho tinha este efeito em Samuel. Fazia-o sentir-se único e abençoado.

Olhando em frente, Samuel conseguia ver a saída do túnel a aproximar-se, apesar da luminosidade lhe parecer algo estranha. Parecia que a água à saída do túnel tinha uma cor ligeiramente inconstante, oscilando suavemente em tons de azul, como se uma membrana transparente vacilasse regularmente. Intrigado, Samuel continuou a sua travessia.

Se lhe pedissem para indicar a zona exacta do túnel em que teve aquela sensação estranha, ele não saberia dizer. Foi algures a meio que sentiu um ligeiro aperto no peito, como se o seu coração saltasse uma ou duas batidas do seu ritmo regular, seguido de uma sensação de frio e náusea no estômago, como quem desce rápido demais num elevador avariado.

Quando chegou finalmente à saída do túnel e emergiu do outro lado, a sensação tinha essencialmente desaparecido...mas havia algo que estava errado. Samuel não sabia porquê, nem como, mas havia algo...diferente. A começar pela cor da água.

Estava estranhamente mais arroxeada.

Agora, com o computador no pulso direito a apitar, sinalizando o final da paragem de segurança, Samuel olhou para a superfície como era seu hábito, no sentido de garantir uma subida sem percalços.

O que viu não registou imediatamente na sua mente como algo de estranho. Como se inicialmente o seu cérebro se recusasse a acreditar.

O sol não estava no céu. No céu, através da superfície da água, o que Samuel via era duas estrelas. Uma mais avermelhada e a outra muito maior, mais brilhante e de tom amarelado. Duas estrelas, dois sóis. Samuel não compreendia. Simplesmente, não compreendia.

Lentamente, começou a enrolar o que restava do fio no carreto e subiu até à superfície. O oceano, em tons de roxo azulado estendia-se até perder de vista. Olhou para cima. Os dois sóis continuavam lá.

De repente, a magnitude do acontecimento assaltou o seu cérebro e Samuel encarou o horror como um homem que descobre que a realidade é muito diferente do que pensava. Que sítio era este? Como veio aqui parar e porquê?

Não fazia a mínima ideia em que planeta ou em que dimensão espácio-temporal estava. Assim, o seu acto seguinte acabou por ser lamentavelmente irreflectido, apesar de ser inevitável que o fizesse, sobretudo quando a sua reserva de ar acabasse.

Ainda dormente com tudo o que lhe tinha acontecido, e reconhecidamente não em plena posse das suas faculdades mentais, Samuel tirou o regulador da boca e susteve a respiração. Após alguns momentos de medo, reconheceu a inevitabilidade da situação, fechou os olhos e esperou pelo melhor.

Inalou timidamente, e gases desconhecidos à ciência humana entraram-lhe nos pulmões e provocaram-lhe convulsões musculares muito violentas.

Foi com um estalo audível que morreu, quando a sua coluna vertebral se estilhaçou com a força das contracções musculares.

Samuel Martins, médico, mergulhador, flutuava morto, num oceano alienígena de um planeta distante.

Mais uma vez, o mergulho tornara-o único. Mas desta vez, não tinha sido particularmente abençoado.

2 comentários:

Cheila Saldanha disse...

Gostei...
Inicialmente estava a contar que ele depois de atravessar no tunel ía ficar com alterações a nível físico, mas gostei da volta que deste. A parte triste é que ninguém o vai encontrar e, se calhar, foi o único a conseguir atravessar o tal túnel...

João Pedro "jota" Martins disse...

100% twilight zone :) gostei de ler.

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